A primeira vez que tive o desprazer de ouvir “Só Fé” foi por causa do meu amigo Francisco Escorsim, que teve a ideia de jerico de fazer react (coisa de jovem) das músicas mais tocadas no Spotify. A segunda foi outro dia mesmo, depois que a Mariana Braga chegou cantando e dançando no estúdio do Entrelinhas. E a terceira foi hoje mais cedo, quando meu amigo Jones Rossi me sugeriu que escrevesse este texto.
Antes, porém, é meu dever jornalístico informar que “Só Fé”, no momento em que escrevo este texto a música mais tocada no Spotify, com 68.661.052 reproduções, é interpretada (por assim dizer) por um artista cujo nome a pudicícia me impede de mencionar. Porque sonoramente é uma das palavras mais horríveis da língua portuguesa, além de ser um palavrão daqueles bem vulgares mesmo, do tipo que apenas gente da laia do Lula diz: [FALA BEM BAIXINHO] grelo.
Absorvente da consorte
Pois bem. O sujeito que atende por esse nome que não vou repetir, nem adianta insistir, está fazendo sucesso com uma música que, apesar de doer nos meus ouvidos de semiancião chato, parece expressar o sentimento de boa parte dos brasileiros ao dizer que a vida é boa e não precisamos de muita coisa, não, apenas do mé, do leitinho da criança e do absorvente íntimo da consorte. E bota sorte nisso!
Ao ouvir essa preciosa exegese, decidi enfrentar mais uma vez a batida monótona, a melodia infantil e a voz desgraçadamente ruim, mesmo com distorção, do cantor inominável. E o que eu encontrei em meio à vulgaridade foi... Nem acredito que vou dizer isso, mas foi mesmo, senão valores scrutonamente conservadores, uma resignação, uma humildade e uma gratidão que contrastam com a inveja, a soberba e a armadura dos progressistas.
“A vida é de boa”
Meu Deus! Será que estou falando muita bobagem? Não é possível que uma música que fale em mé e em “modess da muié”, cantada por alguém que se faz chamar por um palavrão dos mais chulos, possa expressar algo de bom. Quer saber? Vou até ouvir mais uma vez para ter certeza. [SAI E VOLTA] É, realmente. Quem ler o verdadeiro poema parnasiano que é a letra de “Só Fé” vai encontrar ali valores que, com um bocado de generosidade, dá para chamar de cristãos e que, usando uma linguagem muito mais pomposa (e educada), todos nós dizemos que precisam ser cultivados.
Duvida de mim? Então tire suas próprias conclusões ao ler os versos (por assim dizer) “Lavei meu rosto nas águas sagradas da pia/ Eu já tô pronto pra matar meu leão do dia”. Algo que, traduzido para uma linguagem de gente normal, equivale a um apelo à conversão cotidiana e à santificação do trabalho. E que tal a sabedoria que não deve nada ao Eclesiastes nos versos “Tudo isso foi de graça, irmão/ As coisas boas são de graça, irmão/ A vida é de boa, não preciso de muito pra ser feliz, não”? Num mundo obcecado pelo dinheiro, talvez essa seja a mensagem que os jovens mais precisam ouvir.
Cotidiano
Mas precisa ser tão ruim, a música? Tão pobre?! Tão descartável? E o cantor e compositor, cujo nome verdadeiro é Gabriel Ângelo Furtado de Oliveira e que também atende pelo nome artístico de De Ângelo (muito menos ofensivo, vai), precisa transmitir a boa mensagem em meio a tanta vulgaridade para se fazer ouvido? Talvez sim, provavelmente sim, com certeza sim. O que me traz à terceira parte deste texto, na qual sou obrigado a elogiar Chico Buarque.
Porque à medida que o refrão “Só preciso de um dinheiro pra comprar um mé/ O leitin das criança e o Modess da muié/ O resto é só fé, só fé, só fé” se grudava em minha mente, eu só conseguia me lembrar de “Cotidiano”, de Chico Buarque. Aquela do “Todo dia ela faz tudo sempre igual...” Uma música infinitamente melhor, nem se compara! E que também retrata alguma resignação, humildade e gratidão pela rotina pequena do homem ordinário – que, para Chico Buarque, não representa o homem comum chestertoniano, e sim o proletário oprimido pelo capital.
Em tempo!
Só que Chico Buarque faz isso sem recorrer aos erros de português e às referências vulgares ao ciclo menstrual. E é por essas e outras (que a minha saudade faz lembrar/ de tudo outra vez...) que “Cotidiano” será incorporada ao cânone da MPB e exaustivamente estudada por muitas décadas, ajudando a impulsionar e a consolidar a visão de mundo necessariamente marxista, materialista e ateia de seu compositor. Afinal, Chico Buarque compôs “Cotidiano” para que ela fosse obra e ainda por cima de arte. Com o objetivo de permanecer. Ao passo que de “Só Fé” dificilmente alguém se lembrará no verão de 2025-26. É por isso, não só por isso, mas também por isso, que eles estão vencendo a guerra cultural.
Em tempo: depois de quatro ou cinco audições, fui assistir ao clipe de “Só Fé” (48.340.720 visualizações no YouTube). E digo quase com raiva: ali não tem valores cristãos coisíssima nenhuma. Tem apenas preguiça, hedonismo, materialismo, exaltação da mediocridade e uma verdadeira repulsa pela ideia de que o homem tem vocação para a excelência. O que, confesso, me dá certo alívio. Sinal de que os valores verdadeiramente cristãos continuam indissociáveis da beleza. Ufa.
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