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Sim. Ontem escrevi sobre a fala abjeta do Lula, que chamou de monstros os bebês frutos de estupros. Minha indignação estava transbordando. Acho que deu para perceber. O que ficou oculto e só transbordou nas lágrimas que ninguém viu nem nunca vai ver foi a dor de ser confundido com um daqueles que, diante da adúltera por Jesus protegida, atiraram a primeira, a segunda, a centésima pedra, impondo sobre ela um castigo mortal e hipócrita. “Temos que ser melhores do que eles”, me aconselhou alguém. Com toda razão.
O que tenho observado por aí, nas esquinas dessas megalópoles virtuais nas quais ninguém se entende, é bem isso: gente (eu também!) condenando a mulher que se submete ao aborto tardio a uma pena que vai além dos teóricos trinta anos previstos para o crime de homicídio. Gente (eu também!) condenando de antemão a mulher (ou jovem ou menina ou criança, mas jamais pessoa com útero) ao inferno, sem em nenhum momento levar em conta as variantes sociais, culturais, emocionais e espirituais que culminam no assassinato de um bebê ainda por nascer. E, por favor, não se ofenda porque também eu faço isso. E muito. Se duvidar, agora mesmo. Somos falhos.
Esse é um dos problemas da generalização e da falta de misericórdia. Que por sua vez é um dos problemas das políticas públicas. Que por sua vez, quando envolve crimes, é um dos problemas disso que entendemos por Justiça, mas que costuma ser apenas vingança. Falta-nos a compaixão ou, se você preferir, a capacidade de entender individualmente o erro e para ele concebermos uma punição verdadeiramente justa, que permita ao outro (neste caso, a mulher que aborta) se arrepender e principalmente aprender com um erro que, neste caso, gera no mínimo duas vítimas: o bebê e a gestante. (E por que não também o pai - e aqui não me refiro a um estuprador?).
Claro que, no afã de subir no púlpito virtual para denunciar a monstruosidade da fala de Lula, personagem que não tenho em alta conta (deu para notar?), a tendência é evocar imagens de efeito coletivo. Mas é óbvio que nem toda mulher que aborta é hedonista ou, no caso de um estupro, uma desalmada incapaz de carregar essa Cruz cujo peso é para mim inconcebível. Por sinal, é aí que residem as maiores e mais infelizes falácias tanto do discurso abortista quanto do pró-vida – quando o debate assume contornos farisaicos. Como se toda e qualquer regra não contivesse lá suas sutilezas e sua porçãozinha de compaixão e misericórdia. As vidas são únicas, as circunstâncias são específicas, e as decisões têm consequências para lá de ambíguas.
O que a sociedade precisa decidir é se, simbolicamente, considera o aborto um erro passível de punições mais e menos graves, como uma espécie de recado, de alerta e até de conselho do tipo “talvez seja melhor não ir àquele baile funk, filha” ; ou se considera uma solução rápida, fácil, barata, acessível e sem maiores consequências ao fruto de um descuido na hora do rala-e-rola ou de uma violência repugnante como o estupro, situação que multiplica infinita e incompreensivelmente a complexidade do caso.
Fanatismo religioso
Não sou, portanto, a favor da condenação a priori das mulheres que se submeteram a abortos. Não importa que ela tenha feito isso porque não quer um filho com Síndrome de Down ou porque estava alegrinha na festa e resolveu, digamos, dar vazão a seus instintos animalescos ou porque foi vítima de uma violência ou porque está em dificuldades financeiras, ou ou ou. O professor Rafael Ruiz me ensinou que, independentemente do que decida a Justiça dos homens, o acerto de contas final será sempre entre o indivíduo e Deus. Acredito nisso. Até porque é o que me consola das muitas injustiças que vejo por aí.
Acredito e aproveito para abordar outro aspecto do texto de ontem e que me fez sofrer para além da indignação pela fala eugenista de Lula. Trata-se do aspecto religioso, porque falei em Cruz e citei São João... da Cruz e no finalzinho fiz menção a um versículo bíblico, dos poucos que sei de cor. Parece que a “contaminação” do discurso, qualquer discurso, por referências bíblicas hoje transforma o texto, qualquer texto, em coisa de fanático religioso – com toda a carga pejorativa que o termo carrega.
O fato é que a religião sempre norteou as normas de conduta. Seu professor de história vai lhe dizer que era para reprimir a liberdade e a felicidade, mas vou contradizê-lo afirmando que não. Que as normas religiosas (e de certo modo as jurídicas também) pretendem evitar ou aliviar um sofrimento que é inerente a todos os seres humanos. A pureza pregada pelo catolicismo, por exemplo, não tem a ver com a “idolatria do hímen”, como já ouvi alguém dizer; tem a ver com tentar evitar situações que descambem para um sofrimento ainda maior. Como o aborto.
No mais, será que meu libelo/panfleto teria mais força e mais “poder de convencimento” se eu citasse Nietzsche ou Platão ou Jordan Peterson ou Byung-Chul Han? Será que perco credibilidade apenas por mencionar o nome de Jesus? Na faculdade aprendi que sim; mas a vida me ensinou algo um pouco diferente. Me ensinou que, mais do que da tradição ou da cultura (no sentido de “referências artísticas”), a fé faz parte do cotidiano, desde o momento em que se observa o nascer do Sol até o primeiro ronco. Porque é nesse cotidiano, imbuído de uma tradição religiosa às vezes imperceptível, que agimos e acertamos e erramos e fazemos o bem e o mal. Este mais do que aquele. Infelizmente.