É véspera de Natal. E eu teria uma ou duas palavrinhas para dizer sobre a data que, neste ano, tem um sentido especial para mim. Afinal, será o primeiro ano em que celebrarei o Natal pelo que ele é: a festa do nascimento de Jesus. E não mera troca de presentes, insultos mal disfarçados de chistes e biquinhos emburrados de quem deu uma joia e em troca recebeu um par de meias.
Mas não adianta. Ao meu redor, só se fala de política. “O golpe já foi dado e você não viu!”, me acusa alguém, os perdigotos cruzando a distância que nos separa como um enxame de andorinhas. “Vamos todos morrer com Lula presidente!”, grita outro, as mãozinhas jogadas para o céu e saindo em disparada. “Quem vai parar Alexandre de Moraes? Vamos ter que aguentar isso até quando?”, me perguntam. E eu me pergunto. E agora pergunto a você: até quando?
Até a hora em que eu resolver evocar a imagem do tio João bêbado, chorando, declarando amor a todos, puxando um Pai Nosso, falando de Jesus para uma plateia desinteressada. Tudo isso depois de dar um banho de mangueira na familhada toda. Até na vó Olívia, que fingia não gostar daquela balbúrdia. Ele morreu há alguns anos e eu não fui ao enterro. Os últimos natais do tio João, imagino que tenham sido solitários. Ele, suas lembranças, suas mágoas, sua cachaça. Me dói pensar que contribuí um pouquinho para essa solidão.
É disso que quero falar. E falo (na verdade escrevo, mas você entendeu) que foi pelas mãos dele, João Moringa, que conheci o perdão. Naquela amanhã de Natal em Maringá, circa 1985, cometi uma traquinagem boba que tirou sangue de um primo. Na verdade foram três pontos na parte de trás da cabeça. Apanhando qual Zezé antes de ir conversar com a laranjeira (quero ver quem vai entender essa referência), fui salvo pela mão amiga do tio João.
Nunca me esqueci. Nunca tive a oportunidade de agradecer. Naquele dia, tio João não apenas salvou um menino da humilhação pública de levar uns muitos tabefes em frente aos primos que, obviamente, se esbaldavam de rir. Ele me ensinou que havia no mundo algo raro, precioso e necessário: o perdão. Como sou um pouco lerdo, porém, levei décadas para entender aquele gesto. Se é que entendi.
Ele que gostava de ouvir Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Lupicínio Rodrigues e Ary Barroso. Que adorava pescar – e tudo o que envolvia uma pescaria com os amigos no Paranazão. E que era fã das porcarias que eu escrevia aos 17 anos. Certa vez, tio João disse que mandou um texto meu para o Boris Casoy. Que, reza a lenda, teria elogiado meu "estilo" e dito que meu futuro como jornalista estava garantido. Quantas vezes me lembrei dessa mentira, rezando para que fosse verdade!
Tio João que estava longe de ser perfeito. Daí porque morreu mais sozinho do que se morre normalmente. Na família, as histórias sobre ele se deformaram, a ponto de em alguns momentos o transformarem num monstro. Por isso hoje me pergunto se é do Purgatório que ele me ouve. Se tem orgulho ou raiva pela distância que mantive entre nós durante mais de uma década. Teoricamente para que o ex-menino de orelhas de abano egoisticamente preservasse a imagem idealizada do tiozão do churrasco sentimental que, aqui e ali, interpretava o Velho Sábio arquetípico.
Lula nomeou não-sei-quem para não-sei-qual-cargo. PEC da Gastança. Lira & Pacheco, a dupla de covardes. A corja de ditadores do STF. Tudo muito relevante, crucial, nay!, fundamental para o futuro do país. Mas nada que inspire quem hoje, só hoje, quer apenas contemplar as circunstâncias e as pessoas que nos moldaram, ensinando aqui o certo e ali o errado por meio de exemplos e palavras, nos perdoando quando mais precisávamos de perdão e nos incentivando, mesmo que para isso tenham apelado para mentirinhas inofensivas.
É que ninguém está interessado na história alheia se ela não rende insulto fácil. Se ela não expressa revolta e indignação. Se ela não serve para comprovar a fraude ou o golpe em fogo brandíssimo do Judiciário. Mas hoje, só hoje, eu precisava deixar de lado a Confraria dos Parasitas que, prevejo, circularão muito por essas páginas no ano que vem. Apenas para poder dizer a você e aos tios-joões que por acaso me leiam: a vida é muito mais interessante quando, na véspera de Natal, a gente pode se esquecer da política para se lembrar de quem está na manjedoura – e tudo o que Ele representa.
Feliz Natal.
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