Ouça este conteúdo
Estou escrevendo uma história chamada “O Sommelier de Auschwitz”. Vai ser publicada algum dia em algum lugar. Isso se eu conseguir terminar o texto. Porque o que começou como uma brincadeira sobre o filão de livros de autoajuda que têm o campo de extermínio como pano de fundo (existe até um "A Dieta de Auschwitz") se transformou numa sofrida reflexão sobre os prazeres e incômodos da vida simples em tempos normais.
A ideia, na verdade, nasceu de uma reprimenda da minha mulher. Para variar, eu estava reclamando – hábito mais feio do que tirar catota do nariz em público. Do que exatamente já nem lembro. Há dias (não todos) em que tudo me incomoda e atiça meu modo reclamão. Ultimamente, por exemplo, o que tem me irritado para além do aceitável são as maritacas e um maldito bem-te-vi desafinado que insistem em me acordar às 4h da manhã.
Também não gosto que façam buracos no pote da manteiga. Ou que coloquem o arroz por cima do feijão. Ou que guardem refrigerante sem gás na geladeira. Ou que mandem uma mensagem de “oi” no WhatsApp sem dizer mais nada depois. Ou que respondam qualquer mensagem minha com o maldito joinha. Ou que me mostrem aquela pele mole do cotovelo quando o braço está esticado.
Mas poucas coisas me irritam mais do que não poder dormir com dois travesseiros altos sob a cabeça e um no meio das pernas, para evitar o atrito de um joelho no outro. É. Sou desses. Diante de todas essas idiossincrasias (que antigamente eram chamadas de “frescura”), e também porque na época eu revia A Lista de Schindler, minha mulher um dia resolveu dar um basta nessa coisa de ficar me ouvindo reclamar de bobagem.
Usando o seu tom de voz mais enfático possível, que ela garante ser herança acidental de seus ancestrais italianos, e uma retórica que ela sabia que iria calar fundo na minha alma, minha mulher propôs que eu me imaginasse num campo de concentração: sem o travesseiro entre os joelhos, sem o pote com a manteiga toda esburacada, sem o refrigerante choco, sem o silêncio necessário para eu pegar no soninho às 21h30.
Daí nasceu Jeremias, o sommelier de Auschwitz nada satisfeito com as condições de acomodação daquele inferno. O problema é que, ao me sentar para escrever, já no primeiro parágrafo a história pegou outro rumo. E Jeremias, se deleitando com um vinho Stierblut contrabandeado por Deus-sabe-quem em troca de Deus-sabe-o-quê, começou a pensar em todas essas idiossincrasias tolas que alimentamos e consideramos indispensáveis à nossa felicidade.
E sobre todo o mal que esses caprichos dos tempos de abundância geram. Aquela nota baixa que damos para o motorista de Uber que, por um motivo qualquer, não pôde lavar o carro. Aquela crítica maldosa que escrevemos sobre o restaurante porque a batata-frita chegou murcha. Aquele hotel onde juramos nunca mais nos hospedar porque não tinha travesseiros o bastante no quarto.
Falta terminar a história e dar a Jeremias um fim digno. Porque no fundo ele é um homem bom que, quando em liberdade, vivia em abundância, num Paraíso estranho onde a temperatura ideal do vinho era a coisa mais importante do mundo. Infelizmente a semana foi cheia e tive de interromper a escrita, mas estou gostando de conviver com esse homem que, do seu catre fedido e famélico, ri de si mesmo e questiona o próprio conceito de prazer e felicidade.
Não precisamos estar em Auschwitz ou num gulag ou ainda num campo de “reeducação” da Coreia do Norte para aprendermos a relevar as deliciosas imperfeições da vida. E não me refiro apenas aos incômodos físicos. Sabe aquela frase que seu amigo disse e não caiu bem no grupo do WhatsApp? Ou a piada suja e grosseira que alguém faz nas redes sociais? Então.
Tudo isso ainda é preferível ao silêncio e ao conforto eterno da morte.