Imagine se, em plena luz do dia, um grupo de soldados, a mando do presidente de um governo militar, mandasse invadir um jornal ou revista cheio de notícias sérias, mas também de celebridades, de piadas, de infindáveis bobagens cotidianas. Agora imagine se, uma vez lá dentro da empresa, os soldados tirassem à força os profissionais autores de notícias, piadas e bobagens com as quais o mandatário não concordasse.
Se isso acontecesse, como de fato aconteceu durante a Ditadura, as reações seriam as mais escandalosas possíveis. Um escândalo contido, meio que sussurrado, talvez expresso apenas com o olhar de quem teme a tortura. Mas ainda assim escândalo! Absurdo! Violação da Constituição! Violação dos Direitos Humanos!
Pois o cenário se repetiu na tarde de hoje (24). O jornal invadido não foi exatamente um jornal, e sim uma plataforma de microblogs, como dizem os mais velhos. A invasão tampouco foi uma invasão como aquela com o estardalhaço das botinas que se ouvia antigamente. Foi uma invasão limpinha, com mandado judicial – expediente que confere uma falsa aura de legitimidade a um ato autoritário vindo de quem mais deveria zelar pela Constituição. O Presidente? Não. Digo, também. Mas, neste caso, quem cometeu a ignomínia foi um ministro do Supremo Tribunal Federal.
Os atingidos são pessoas com as quais pode ser difícil se solidarizar. Elas vão desde o jornalista Allan do Santos até o empresário Luciano Hang, passando por Roberto Jefferson, aquele mesmo que foi condenado no Mensalão do camarada Lula, e pela militante Sarah Winter. São pessoas que professam verdades que, em geral, não condizem com as minhas, tanto pelo tom bem acima do que considero aceitável quanto pelo conteúdo questionável. Pode ser difícil se solidarizar com essas pessoas, mas é necessário.
O que está em jogo
O que está em jogo, aqui, não é só o conceito abstrato da liberdade de expressão. Pelo qual, aliás, já se lutou muito nesse país. Até ontem mesmo não estávamos todos ultrajados com a flagrante censura perpetrada contra a revista Crusoé? Voltando um pouquinho no tempo, me lembro de medida semelhante tomada contra o jornal O Estado de São Paulo para proteger a família Sarney. Isso sem falar nas peças canceladas, músicas retalhadas e até novelas proibidas pelos censores da Ditadura.
Ah, Paulo, você vai dizer e eu vou ouvir de braços cruzados, com toda a paciência do mundo. Ah, mas se eles não tivessem feito “coisa errada” o STF não teria feito uma coisa dessas. Se eles só ficassem publicando meme de gatinho, por exemplo. Você já viu alguém sofrer ação do STF por causa de meme de gatinho? E tem mais: você não pode ficar aí defendendo a liberdade de Allan dos Santos ou Sarah Winter. Pega mal. Eles são contra a democracia, sabia? Eles são fascistas! Eles...
Desculpe, mas vou ter de interrompê-lo aqui. Porque este tipo de argumento é de uma imoralidade que me fura os tímpanos. Não há coisa errada que justifique o atropelo da Constituição. Ora, no Brasil até latrocida tem direito à ampla defesa e ao devido processo legal. Quando o que vigora é a presunção da culpa e do dolo, o próximo passo é qual? Execução sumária dos inimigos?
Quanto a defender pessoas pelas quais não nutro qualquer simpatia (desculpe, Sarinha), o que está em jogo aqui não é este ou aquele nome ou pseudônimo. O que está em jogo aqui é a defesa de um princípio, o de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Receita de bolo
Do contrário, o que falta para termos, aqui mesmo na capa da Gazeta do Povo (ou no UOL, Estadão, Crusoé, Brasil Sem Medo, ou ainda no blog da Maricotinha e no do Ben10BR) receitas de bolo no lugar de críticas severas (quando e se merecidas) aos ministros do STF e aos chefes dos demais poderes?
Está na hora de substituir os novos slogans cheios de boas intenções progressistas, por algo mais antigo, cheirando a naftalina até, mas também mais sólido e mais enfático. Está na hora de abandonar as camisetas do Che e vestir o rosto nada atraente do provavelmente comunista Sérgio Porto, o famoso Stanislaw Ponte Preta.
Que, em plena ditadura (não esta, velada, a outra, explícita) cunhou a frase: “Ou restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos”.
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