Seriam necessárias páginas e mais páginas ao melhor estilo “fluxo de pensamento” para expor tudo o que senti ao assistir à primeira temporada da série “Ted Lasso”, disponível na Apple TV. Mas ainda que o exercício não me soe de todo ruim, pouparei o leitor disso. Direi apenas que Ted Lasso, o protagonista que dá título à série, é o Príncipe Michkin adaptado ao nosso tempo - e espero fisgá-lo com essa isca literária.
Num mundo que vive uma epidemia de cinismo e uma pandemia de perversidade, “Ted Lasso” é uma comédia improvável, cheia de personagens machucados e piadas do Tio do Churrasco. É um milagrezinho, se você preferir. Sem sarcasmo e tendo por protagonista um homem bom que é simples (mas não simplório) e ingênuo (mas não um idiota, no sentido forrestgumpiano do termo), a série foi como um sussurro sobrenatural me lembrando de que ainda é possível viver de acordo com uma ética cristã que, vale dizer, não é explicitamente mencionada em nenhum momento. E precisa?
Aí você chega para mim e pergunta: ser um homem bom mesmo na sociedade cínica e perversa em que vivemos? Mesmo. Ser um homem bom mesmo cercado por pessoas viciadas na paixão torta que a política desperta? Mesmo. Ser um homem bom mesmo com todas as pressões para se alcançar o sucesso, seja lá o que for isso? Mesmo. Ser um homem bom mesmo em meio a este culto à esperteza que nos rodeia? Mesmo. Ser um homem bom mesmo com todos os olhos voltados em nossa direção, à espera do tropeço imperdoável? Mesmo.
Não sei você, mas eu andava precisando desse lembrete. Afinal, soterrados por notícias e pela necessidade de reagir rapidamente a escândalos sem fim, pressionados para alcançar resultados e atingir metas, e desejosos de reconhecimento e admiração, nos entrincheiremos numa tentativa inútil e desgastante de escaparmos a todo sofrimento. E, nessa rotina de nos autoprotegermos, às vezes esquecemos de escutar os aspirantes a homens bom que, se você prestar atenção, estão por aí, falando coisas boas de coisas boas o tempo todo, para quem quiser ouvir, aprender e sobretudo imitá-los.
Imperfeição
Quando falo em ser um homem bom, veja bem, não estou falando em ser um homem perfeito. É desse equívoco, aliás, que nasce a justificativa para muitas pessoas que optam pelo caminho pragmático (com um toque de niilismo) da esperteza. Incapaz de atingir a perfeição, há quem se contente com a versão menos perfeita de si mesmo, marcada por erros que, um atrás do outro, compõem o que se convencionou chamar de "homem mau". Tanto melhor se esses erros vierem recobertos por uma generosa camada de sucesso - o que justificaria a opção pela maldade. Mas aí é que está o xis da questão: só é bom o homem que se reconhece imperfeito, falho, pecador, e que vê no outro imperfeições, falhas e pecados comuns a todo mundo. E, portanto, passíveis de perdão.
Tampouco me refiro ao homem que bate no peito para falar: eu sou bom. Até porque entre nós, homens comuns, isto é, não-santos, é mais exato falar em estar um homem bom do que em ser um homem bom. No mais, quem não reconhece o esforço diário da empreitada provavelmente está ainda bem distante do objetivo. O homem bom duvida de si e é a partir dessa dúvida que ele reafirma sua intenção de ser bom. Mesmo que, aqui e ali, falhe miseravelmente.
Numa coisa, porém, os cínicos têm razão: sofre quem faz essa opção excêntrica. Quem opta por ser um homem bom é humilhado. É constantemente xingado de hipócrita por quem não aceita menos do que a perfeição, de presunçoso por quem julga a ambição alheia, de idiota por quem se acha malandro, e até de covarde. Afinal, como assim você ousa não participar da Grande Guerra dos Espertos que marca o nosso tempo? Quem você pensa que é para sussurrar em vez de gritar, para sugerir em vez de mandar, para passar pano em vez de condenar, para fazer rir em vez de sair por aí arrancando os cabelos?
E, no entanto, "Ted Lasso" nos ajuda a lembrar que os aspirantes a homens bons estão por aí. Talvez um deles esteja ao seu lado agora mesmo. Talvez ele esteja, veja só, lendo este texto diante do espelho! Talvez outro esteja, a despeito dos insultos cotidianos e da dificuldade de expressar toda a admiração por uma simples série de comédia, encerrando mais uma crônica, na esperança infundada (é fé mesmo!) de ser lido por outras pessoas que, apesar dos muitos tropeços, também se esforçam todos os dias para serem bons.
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