Ele ligava toda semana. Falávamos da vida, mais da minha do que da dele; de trabalho, mais do dele do que do meu; de política e de futebol. Eram conversas longas, entremeadas por piadas que não levavam a lugar nenhum. Ele dizia que a gente precisava registrar aquilo, que nossos diálogos eram verdadeiras “sopas de tamanco”.
Foi o único que, apesar da distância, não me abandonou naqueles anos tenebrosos. Em retrospecto, me lembro do constrangimento dele quando eu expressava alguma tragédia definitiva – que não era definitiva coisa nenhuma. Muito mais experiente do que eu, ele ria das minhas aflições. Profetizava o óbvio que eu insistia em não ouvir: vai passar. E dizia, jocosamente, que eu estava sofrendo de polzonoffite. “Mas é aguda, e não crônica”, esclarecia.
Até que não ligou mais. Demorei a perceber. Naquela época, depois de me arrastar por anos no Vale das Sombras, buscava me reerguer. E essa busca por alguma redenção passava necessariamente pela escrita. Daí porque um dia, lá pelos idos de março ou abril, decidi voltar a me arriscar na arte imprecisa de juntar lé com cré. Joguei o moletom fora; vesti calça, camisa e até gravata, me sentei numa cadeira de executivo como se fosse sério e me pus a escrever: “Este aí de pé no sofá, a corda no pescoço, pensando se dá ou não o passo definitivo, é Ernesto Unslovt, nosso protagonista e o homem que matou Luiz Inácio”.
Quando dei por mim, o romancete (novela, como me corrigiram um sem-número de chatos) estava pronto e duas ou três semanas de silêncio entre nós tinham se passado. Talvez ele estivesse viajando para entrevistar um astronauta ou um ex-líder da União Soviética. Talvez estivesse mergulhado na obra de Glauber Rocha. Talvez estivesse apenas de férias, desligado do mundo. Liguei e nada. Mandei e-mail e nada. Mensagem de texto e? Nada.
Estranhando o silêncio e o sumiço, recuperei os super poderes do repórter investigativo que nunca fui e me pus a procurar um contato em comum. Algo surpreendentemente difícil. Foi quando percebi que, apesar da nossa amizade, pouco sabia da vida pessoal dele. Fuça daqui e fuça dali, encontrei um telefone que possivelmente me esclareceria o mistério. Curioso: jamais passou pela minha cabeça que o silêncio pudesse ter a ver com uma desavença qualquer. Não tinha mesmo.
Ele havia sofrido um acidente vascular e estava internado. O pior já tinha passado, me assegurava o interlocutor. Ele deve estar em casa na semana que vem. Me lembrei imediatamente de nossas raras e superficiais conversas sobre a morte. Ele havia me falado de uma crise renal que sofrera em pleno voo. Eu já tinha ultrapassado minha quota de menções a Cioran ou aos poetas românticos do século XIX, aqueles que morriam ou de tédio ou de tuberculose.
Uma semana mais tarde, toca o telefone. É ele. Que vai me contando com excepcional leveza seu périplo. Ele conta que se lembra só de passar mal, de sentir que fazia força para resistir a um desmaio, da sala de cirurgia – e só. “Eu podia ter morrido”, disse, como se tivesse se dado conta disso só naquele momento. “Mas agora está tudo bem. E como vai a vida?”, perguntou.
Ansioso para contar ao amigo que tinha voltado a escrever e que decidira me curar de uma vez por todas da polzonoffite, falei e falei. “Me manda o livro quando estiver pronto”, pediu ele. Claro que mandaria. Falamos também de política e, sem que eu percebesse, logo estamos pondo mais pimenta na nossa tradicional sopa de tamanco.
Aí, por algum motivo que até hoje me escapa, antes de desligar ousei dizer a ele algo absurdo. “Cara, preciso te dizer uma coisa”, anunciei, aumentando o suspense. Ele esperou em silêncio. “Olha, só posso te agradecer por tudo. Por você ter ficado ao meu lado. Esse negócio aí que te aconteceu me assustou. Sei que você vai achar que é exagero, mas queria que você soubesse que te amo, cara. Você é muito importante para mim", disse, sem esconder algum constrangimento.
Do outro lado, ele riu sua risada mais aberta. “Para com isso, rapá”, disse. Parei. Desligamos. Mandei o livro. Ficamos de conversar nos dias seguintes. E fui tratar de me reerguer. Até que, no final de uma tarde qualquer de inverno, assistindo a um telejornal, escutei da apresentadora “agora uma notícia triste” e esperei pelo pior. Que não tardou.
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