Tenho um amigo que acha que tudo o que escrevo é indireta para ele. Inclusive isso. Eu disse amigo? Minto. Pode ser uma amiga. Pode ser um conhecido. Pode ser um parente. Pode ser alguém com quem só tive contato por redes sociais. Pode ser até mesmo você que está aí me lendo.
E é justamente aí [Não, não aí. Mais para a direita. Não. Volta. Mais para a esquerda. Quase, quase. Pronto. Bem aí mesmo] que está o problema dos textos que se pretendem a ataques ou deboches indiretos a uma pessoa específica: eles perdem seu caráter universal para se imiscuir nas picuinhas das relações cotidianas. Só os escritores de pouca ambição se dariam ao trabalho de “imortalizar” um tapa na cara alheia. Do qual, aliás, provavelmente se arrependerá num futuro próximo. Falo por experiência própria e recente.
Não que eu seja santo, mas sou um pecador que tenta aprender com os erros. Já escrevi, num passado tão remoto que era registrado num site chamado Blogspot, muitos textos que tinham endereço certo. Mas, curiosamente, o conteúdo desses petardos (odeio essa palavra) sempre acabava sendo entregue na casa errada. Até por isso desisti desse recurso. A estupidez do jovem está em acreditar que vai ser lido pela pessoa certa e que determinada afirmação a tornará submissa à razão de quem escreve. Meu Deus! Há tanta arrogância nisso que não sei nem por onde começar.
Sem falar no desperdício de criatividade que é escrever esse tipo de coisa. Preciso criar uns personagens que dizem umas coisas estapafúrdias dessas que o amigo também diz, sem que seja necessariamente o amigo. Preciso transformar o conhecido em personagem. Preciso imaginar o parente e reduzi-lo não ao indivíduo que ele seguramente é, e sim ao representante de uma coletividade da qual ele, burro mas esforçado, nem percebe que faz parte. Também por isso não escrevo indiretas: é um trabalho gigantesco para um resultado pífio.
Carapuças customizadas
Não teço carapuças customizadas. Nunca. Até porque não tenho as medidas da sua cabeça. O que escrevo se baseia em observações gerais, em memórias confusas e em delírios que antecedem o sono. A realidade supostamente reprovável dos que me cercam não me interessa. Pelo menos não como matéria-prima dessa minha pseudoliteratura. E, no mais, de que adiantaria esfregar na cara do outro uns defeitos à toa se me vejo também coxo?
Por isso prefiro rir e repreender aquele que vejo no espelho. Prefiro refutar o “Poema em Linha Reta” e confessar umas tantas cobardias a apontar a evidente covardia alheia. “Onde é que há gente? Onde é que há gente no mundo?”, pergunta um Fernando Pessoa “farto de semideuses”. Dá vontade de pegar a máquina do tempo e ir a Portugal esganar o poeta e dizer que as gentes estão dentro da gente. Sempre dentro da gente, seu idiota!
Às vezes, reconheço e enrubesço, acontece de minhas palavras se comunicarem diretamente com o superego alheio. Não me orgulho nem me envergonho dessas coisas que não têm intenção. É acaso. Ou melhor, milagre. Esse tipo de comunicação milagrosa está na próxima essência da literatura, pseudo ou não. É o prazer inconfessável de quem escreve: imaginar no leitor uma identificação virtuosa com o personagem (ou eu-lírico), a partir da qual nasça uma improvável e rara reflexão transformadora.
Usados a sério, o “meu amigo”, o “uma pessoa” e o abominável “tem gente que” são recursos retóricos dos mais vulgares - e eficientes. Para mim, contudo, eles funcionam mais para expressar solidariedade do que como arma de ataque. Só reduzo à coletividade aquilo com que de alguma forma me identifico. E dou a mão ao amigo, a uma pessoa e até a essa gente que acha que tudo é com ela. Talvez por desconhecimento do outro.
Mesmo com tudo isso devidamente aqui exposto com as vírgulas nos lugares certos, porém, algo me diz que vou continuar tendo um amigo que acha que tudo o que escrevo é indireta para ele. Porque não adianta. Tem gente que é assim mesmo.
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