A raiva nasce de uma sensação de impotência. É quando a gente olha para um lado e para outro tentando encontrar uma saída, não consegue e se vê tomado por um desejo irracional de abrir caminho à força. Daí saímos xingando, colocando carinha de ódio nas redes sociais, subindo hashtags indignadas, esbravejando contra as nuvens.
Quis fazer tudo isso e mais um pouco na terça-feira (30), quando, em meio ao tal ciclone bomba e depois de três meses de medidas restritivas de todos os tipos, o governador do Paraná, Ratinho Jr., anunciou o lockdown no estado. Prevendo a reação negativa, vossas excelências, os marqueteiros, ainda se saíram com um eufemismo – quarentena restritiva – para amenizar o impacto das decisões tomadas no conforto dos palácios.
Naquele dia, me senti como um camundongo – pisoteado pela bota pesada do Estado. Um escravo – de cabeça baixa prestando humildemente obediência à mão que me açoita sem qualquer misericórdia. Um servo – obrigado a sustentar o senhor feudal à custa da minha própria fome. Um prisioneiro – impedido de tomar as decisões mais simples do cotidiano sem a anuência de um carcereiro invisível e prepotente.
Mas aí dormi a melhor noite de sono possível e me pus a tentar entender o que se passa na cabeça de nossos governantes. A imaginar qual a lógica supostamente virtuosa por trás de medidas escancaradamente estúpidas como proibir o funcionamento dos supermercados aos domingos ou a circulação de pessoas entre 22h e 5h. E por “governantes” não me refiro aqui apenas à pessoa que ocupa o cargo máximo do Executivo. Estou pensando em todos os burocratas e tecnocratas envolvidos no cerceamento desta que é a liberdade mais básica de todas: a do ser humano trabalhar e ganhar seu sustento.
É muito fácil recorrer apenas à raiva. Dizer que tudo é uma grande bobagem ou, pior, um plano globalista para destruir o capitalismo – ou qualquer teoria da conspiração do gênero. Tão fácil quanto é ceder ao medo impulsionado pelos gráficos apocalípticos que ontem pediam o achatamento da curva e hoje pedem... O que pedem? Mas ficar restrito à raiva e ao medo significaria também ignorar a fascinante complexidade que é o ser humano, suas decisões dúbias e seus sistemas de governo extremamente falhos.
Cerveja e frango a passarinho
Por decisão do próprio governador, infelizmente não posso me sentar com ele e seus assessores para, diante de uma bela porção de frango a passarinho e alguns copos de cerveja, descobrir o que se passa em suas cabeças. Uma pena. Porque realmente gostaria de ver confirmada minha tese de que não há (ao contrário do que diz minha raiva) má-fé nessas medidas inúteis antipandemia. Queria poder dizer com toda a certeza do mundo que nossos governantes estão fazendo o “seu melhor” – embora o melhor deles, neste caso, se resuma a um monte de medidas tomadas a esmo, mais por instinto do que por razão.
Daí imagino o governador rodeado pelos burocratas, cada qual com uma proposta salvadora – a despeito de a história recente mostrar que os lockdowns não evitam mortes. A tudo ele escuta com paciência e um tiquinho de pavor. Ele teme entrar para a história como O Homem que Não Fez Nada. O que é legítimo. Quem gostaria de um epitáfio desses? E pensar que há apena um ano e meio, quando se sentou no trono do Palácio Iguaçu, seus inimigos eram coisas mais prosaicas, como a corrupção endêmica e a eterna chorumela dos professores.
Vale lembrar ainda que Ratinho Jr., bem como os governadores de outros estados, tem em seu encalço o incansável Ministério Público Estadual – uma espécie de fraternidade de escolhidos que acreditam que sabem o que é melhor para todos. Daí o imagino recebendo o representante do MP, quem quer que seja, com seus memorandos e ofícios e latinório e a arrogância típica do concurseiro bem-sucedido, lhe dizendo que ele tem que fazer alguma coisa. Que coisa? Ora, que tal restringir o funcionamento dos supermercados a 30% da capacidade?
A medida carece de qualquer base científica (por que não 25% ou 37,2% ou 49%?) e vai gerar transtornos enormes para a população. Mas quem se importa se ela basta para passar a impressão de que o governador está fazendo algo para evitar uma tragédia que, até aqui, por onde passou o coronavírus, se mostrou inevitável?
O modelo matemático é a versão contemporânea do proverbial brioche de Maria Antonieta – que, aliás, nunca disse aquela frase, coitada.
É assim que imagino o desastre se formando na cabeça bem-intencionada dos nossos governantes: entre o medo do MP e o medo de figurar nos dicionários do futuro como sinônimos de fracasso ou, pior, covardia. Talvez uns estejam até arrependidos de terem entrado para a política justo agora, quando bem poderiam viver o melhor da vida esbanjando a fortuna. Sim, também é possível que uns, enquanto fazem a lista de compras para a Maria, que passará horas geladas na fila do mercado, batam no peito e anunciem para o espelho a própria glória: eu contive o coronavírus.
Enquanto isso a nós, os camundongos, os escravos, os servos e os prisioneiros, resta a resignação dos versos de Manuel Bandeira, da quarentena eficaz que podia ter sido e não foi e do último tango argentino, que será ouvido e chorado, mas não dançado. Porque o senhor governador, os burocratas do MP e um ou outro cientista enfastiado com a própria perspicácia não deixam.
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