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No fim de semana, bateu um vento gelado e úmido de nostalgia e, de repente, me peguei ouvindo Mutantes – a iconoclasta banda que tanto me fez rir na adolescência. E lembrei, sem vergonha alguma do ridículo, que meus ouvidos contestadores se deliciavam com versos típicos da época, como “as pessoas na sala de jantar são ocupadas em nascer e morrer”. Era impossível ouvir “Panis et Circenses” sem abrir um sorrisinho presunçoso na cara espinhenta.
Até que bati com o dedinho na quina da cama e me dei conta: a geração maluquinha dos Mutantes venceu aquilo que chamam de “guerra cultural”. E, por isso, os contestadores d’antanho sofreram uma rasteira da história. Hoje em dia as pessoas na sala de jantar não estão mais ocupadas em nascer e morrer. Elas são ocupadas em garimpar aceitação.
E bota ocupada nisso! Veja os casos recentes da pandemia de coronavírus e do assassinato de George Floyd. As pessoas na sala de jantar, antes ocupadas em nascer e morrer (o que era visto como um pecado imperdoável pelos que pregam o surgimento de um homem superior, que pense em política o tempo todo), agora comem com o celular na mão, sem falar umas com as outras, buscando saciar, na multidão de anônimos ou semianônimos das redes sociais, uma insaciável sensação de pertencimento.
Por isso é que elas passam os dias dando opinião sobre tudo e qualquer coisa. Sobre assuntos gigantescos e ultracomplexos, diante dos quais a opinião delas é insignificante, e sobre assuntos que, há vinte ou trinta anos, não despertariam muito mais do que um bocejo ou uma risadinha de canto da boca. Sobre polêmicas reais a respeito das quais chamais se chegará a qualquer conclusão e sobre polêmicas falsas cuja relevância no tal “grande esquema das coisas” não vale nem o esforço de se tirar os olhos da comida, mas que hoje são vistas como uma oportunidade de existir – e de ser reconhecido como alguém inegavelmente virtuoso.
É o neoexistencialismo virtual que Sartre nunca ousou propor. Nele, a ideia de que o homem só existe quando reconhecido pelo outro ganhou outra dimensão. O neoexistencialismo virtual transformou essa busca pela sensação de existir, que só se manifestaria no reconhecimento pelo outro, numa busca pela própria Salvação. E é por isso que as pessoas na sala de jantar ignoram tanto o nascer quanto o morrer e se concentram nessa versão bufa do existir. Que, vale a pena repetir, só é possível com o reconhecimento alheio.
Desse caldeirão macabro é que brotam os exércitos de ativistas de sofá cuja causa não importa, desde que ela venha recoberta por uma fina camada de virtude facilmente identificável. Entre o nascer e o morrer, esses soldadinhos cheios de autoimportância marcham pelo universo virtual com suas frases feitas e os indefectíveis badges e hashtags. Eles não querem, de fato, mudar o mundo para melhor. Querem (na verdade, precisam) que você os reconheça com seres “do bem” a fim de que sintam que estão vivos, que existem.
Por isso essas pessoas na sala de jantar não tiram mais o olho do celular ou do computador. E escrevem manifestos recheados de palavras lindas e endossam isso e repudiam aquilo e ficam indignadas com cem mil pontos de exclamação!!! De certo modo, elas dão a vida (no sentido de abdicar deste tempo maravilhoso entre o nascer e o morrer)em troca dessa deliciosa aceitação, desse gozo de pertencimento, desse existir extasiante.
Não que elas pretendam se autoimolar como os monges budistas na TV de tubo da minha infância, claro. Elas tampouco se importam com a concretização ou não do objetivo. Ontem foi #MeToo, hoje é badge antifascista no avatar e amanhã é imagem toda preta no Instagram. O importante é comungar nessa versão perversa do “bem”. E de uma forma bem explícita (likes, coraçõezinhos, comentários do tipo “é isso, cara!”, “tamo junto”), para que fique bem claro que as pessoas na sala de jantar, para além do nascimento e aquém da morte, existiram de fato.
Sartre é filósofo da juventude. E ouvir Mutantes depois de certa idade pode ser, reconheço, sinal de demência. Coincidência que me leva a acreditar que essa necessidade patológica de aceitação, esse vício em ter seu nome associado à causa do momento, essa obsessão em se mostrar uma pessoa “do bem” tem algo de tão ridículo quanto um adolescente trocando de voz.
Quero crer que, lá no alto, sobre as nuvens que por ora derramam uma chuva fraca e fria, há um anjo todo tenso e preocupado com os destinos da Humanidade sendo consolado por outro anjo, mais experiente, que diz, ou melhor, profetiza:
— Vai passar. É só uma fase.