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Como o Coringão aparentemente tinha ganhado no dia anterior, aquela era uma tarde tranquila de domingo na periferia. Fazia sol e calor. Ao redor da delegacia, os gritos das crianças era aqui e ali interrompido pelo funk melódico de uma das lajes próximas. Tudo estava tão calmo que o dr. Menezes, delegado de plantão, chamou seus buddies da Sanfran para assistirem a um jogo de futebol americano. Dr. Menezes era fã do Tom Brady e não tinha vergonha de se assumir assim.
O entusiasmo dos meninos foi interrompido por um policial magricela que entrou todo esbaforido na sala bem quando Brady fez um de seus passes de 70 jardas e o delegado soltou um inconfundível gritinho de entusiasmo. “Dr. Menezes, temos uma emergência”, disse ele. O delegado perguntou se era chacina, ao que o policial respondeu que não, que era uma mulher descontrolada. Dr. Menezes perguntou ao policial se a mulher era bonita, mas, sem esperar por uma resposta, e na ânsia de conseguir um date para aquela noite, foi correndo atender a ocorrência.
No balcão, ele se deparou com dona Filomena, 202kg de puro desespero, acompanhada por seu filho Enzo Gaspar, uma bolinha de banha, ranho e lágrimas. “Roubaram o doce da boca do meu filho!”, contou dona Filomena ao delegado. Dr. Menezes disse que era uma lástima, que ele sentia muito, que era um absurdo essas coisas acontecerem em pleno século XXI, mas a polícia não contava com recursos para investigar esse tipo de ação. “Deve ter sido um menino esfomeado que vai dividir o resto do docinho com seus sete irmãos menores que vivem ali no acampamento do Boulos, sabe?”, tentou ele, apelando para o senso de justiça social da cidadã indignada.
Mas dona Filomena tinha lido a Constituição e conhecia seus direitos. Ela sabia que um furto era um furto era um furto. E não estava disposta a arredar o pé da delegacia enquanto o meliante não fosse devidamente encarcerado e Enzo Gaspar aprendesse por experiência própria a importância da lei para a manutenção da ordem na sociedade contemporânea. Coisa assim. Resignado e com preguiça de citar Weber ou Foucault, o dr. Menezes começou ali mesmo o interrogatório sobre o caso. “Qual era o tipo de doce?”, perguntou ele, olhando melancolicamente para sua sala, onde os buddies da Sanfran celebravam mais um touchdown.
Se fosse um jogo da temporada regular, tudo bem. Mas, como era jogo de playoff, dr. Menezes decidiu recorrer ao maior detetive do mundo, o doutor Palhinha de Taubaté. Que, soube ele por um amigo do amigo do amigo, por puro acaso – puro acaso mesmo, juro! – estava passando o fim de semana na casa de um primo que morava ali perto. Dr. Menezes chamou o policial magricela e ordenou que ele fosse buscar o dr. Palhinha. “Mas, chefe, a gente fez acordo com a VSC [Vítimas da Sociedade Capitalista, a facção que controlava o entorno]. Se eu entrar lá é capaz de virar peneira”, tentou argumentar o policial. Mas o dr. Menezes não quis nem saber.
Dr. Palhinha chegou chegando, bagunçando a zorra toda. Feitas as apresentações devidas, o detetive se virou para a dona Filomena. “Vishmaria! Certeza que a senhora num tá grávida? Deve di tê uns deiz bacurauzinho aí drento”, disse ele para a mulher. Que agora estava furiosa. “O que que é isso?! O que que é isso?! Eu tenho meu orgulho!”, disse ela, remexendo na bolsa como se de lá fosse tirar um documento qualquer que atestasse sua dignidade.
Voltando a atenção para Enzo Gaspar, dr. Palhinha deu uma, duas, três voltas ao redor do balofinho, até ficar atordoado com seus pensamentos, que nem eram tantos assim. O menino o acompanha com uns olhos afundados na gordura da cara. Pairou o silêncio constrangedor que caracteriza o encontro entre um gênio e alguns idiotas. Até que, com o brilhantismo que lhe era próprio, dr. Palhinha concluiu que não se tratava de um delito cometido por mendiguinhos esfomeados, como pensava o dr. Menezes. “Mió sair daqui. Tô conseguindo pensá direito não. Só vem piada de peso na minha cabeça”, disse. “Mas me fala mais desse doce aí. Era de fruta?”.
Depois de ouvir os detalhes do caso, dr. Palhinha anunciou que daria uma volta pela favela. “É comunidade que fala”, corrigiu o dr. Menezes. “Então vô dá umas vorta pela favela da comunidade”, disse, porque deusolivre usar as palavras erradas. Empolgado com a presença do detetive-celebridade, o dr. Menezes até se esqueceu do jogo de futebol americano para acompanhar a investigação. O policial magricela, que não tinha mais o que fazer, disse que iria junto - e foi. Dona Filomena queria ir também, mas bateu aquela preguiça. “O iFood entrega aqui?”, perguntou ela, descansando seu corpanzil num banco de cimento daqueles bem reforçado.
Na porta da delegacia, dr. Palhinha olhou para um lado e para o outro, levou o dedo à boca, o expôs ao vento e indicou em que direção seguiria. “Se é roubo é pra esquerda”, disse. Atrás dele, dr. Menezes e o policial magricelo o seguiam em fila originária de certo país da Ásia meridional. No caminho, o detetive se deparou com um cracudo e um maconheiro. Diante do olhar inquisidor do dr. Menezes e do policial magricela, ele foi logo se adiantando: “Nananinanão. Aquele ali, ó, cabô de pitá uma pedra. Num vai te fome pelos próximos dois dias. O otro… Ave. Dá pra senti daqui o bafo de sanduíche de leite condensado com feijão”.
Alguns metros adiante, dr. Palhinha achou por bem entrar num bar, onde começou a bater papo com Sandra, uma linda mulata que ostentava um proeminente pomo-de-Adão. “Rapariga simpática, né?”, comentou ele com os colegas, depois de fazer a Sandra algumas perguntas aparentemente aleatórias, como “Você acredita na Terceira Via?”, “O voto deve ser auditável?” e, finalmente, “O que é um pontinho verde no meio da Antártida**?”.
Foi quando, nos fundos do boteco, dr. Palhinha viu um homem mezzo baixinho, mezzo gordinho, de barba e camiseta apertada, bebendo Velho Barreiro como quem degusta um licor de poire. O detetive se aproximou do dono do bar e perguntou o nome do sujeito. “Luís”, respondeu o Turco. “Mas, se eu fosse vocês, não chegaria nem perto dele”. O Turco não esperou que as sobrancelhas se arqueassem para esclarecer: “Ele é uma Vítima da Sociedade Capitalista”.
Dr. Palhinha engoliu em seco e saiu do bar um tanto quanto decepcionado consigo mesmo. Duvidando da própria competência. Questionando o sentido da vida. Ponderando sobre o pomo-de-Adão da moça simpática. “Um muierão daquele sozinha no bar. Tem coisa errada aí”, pensou. Assim refletindo, dr. Palhinha se viu diante de uma casa com a janela bem perto da calçada e na altura dos olhos. Por puro acaso – puro acaso mesmo, eu juro! – dr. Palhinha olhou para dentro da casa e viu um homem de seus trinta anos lendo um livro de Paulo Coelho ao som de Chico Buarque, numa sala toda vermelha, decorada com estrelas de todos os tamanhos.
“Nem num precisa procurá mais. Taí o hómi que ocêis procura”, disse ele aos policiais, que nem perguntaram como o dr. Palhinha tinha chegado àquela brilhante, mas óbvia, conclusão. Fazendo pose de tira, os dois sacaram as armas do coldre e se prepararam para dar o bote.
Ao perceber a movimentação na calçada, contudo, o homem, que por puro acaso – puro acaso mesmo, eu juro! – também se chamava Luís, foi logo tirando da bolsinha de couro a tiracolo um habeas corpus assinado por um ministro do Supremo. Não vou dizer qual e não adianta implorar.
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* Honório Palha de Godoy, o dr. Palhinha, é um "homem bronco, fortão, facilmente avermelhável" e que "passa o dia no banco da praça Calixto Bolinha com seus amigos taxistas e a tia do bócio, a arejar as unhas encravadas dos pés sob a sombra dum imenso jequitibá branco". O renomado detetive, conhecido por seus métodos de investigação polêmicos, pré-científicos e pré-iluministas, é uma invenção do escritor Alexandre Soares Silva e surgiu para o mundo no livro "O Homem Que Lia Seus Próprios Pensamentos".
** Um pingreen.