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Usando óculos escuros que lhe conferem um ar de... de... de... disso aí que você está pensando e não posso escrever, o ministro Dias Toffoli citou Gilberto Gil durante as discussões quanto à constitucionalidade do Artigo 19 do Marco Civil da Internet. Foi um momento constrangedor, mais um, desse senhor de 57 anos que, como toda uma geração, aprendeu que os cantores populares são gênios cuja sabedoria impressiona a todos. Oh! Aliás, abramos aspas para o grande jurista Dias Toffoli citando a sábia doutrina gilbertogilense:
Criar meu web site
Fazer minha homepage
Com quantos gigabytes
Se faz uma jangada e um barco que veleje
Concordo
Uma porcaria de música, concordo. Recitada durante um julgamento importantíssimo, concordo. Por um juiz intelectualmente incapaz de participar de uma roda de conversa no Dante, concordo de novo. Tudo isso numa suprema corte composta por homens medíocres de ambições idem. Você diz essas coisas e eu não só concordo como adiciono uns três ou quatro palavrões impublicáveis. Porque só um palavrão dá conta de expressar toda a minha revolta e impotência diante da estupidez de Toffoli & Cia.
Física quântica
Deixando um pouquinho a indignação de lado, porém, eis que volto ao remoto ano de 1997 ou 1998. Gilberto Gil acaba de lançar Quanta – o disco que contém a música “Pela Internet”, citada pelo supremo pascácio – e eu sou um jovem estudante de Jornalismo na gloriosa Universidade Federal do Paraná. Onde, não por acaso, Gilberto Gil vai dar uma palestra para falar ( ) de música?, ( ) de política?, ( ) de cultura popular?, ( ) de liberdade de expressão? Não, Gilberto Gil vai falar de (x) ciência. Mais precisamente física quântica.
Doidinha
Na época, deslumbrado e enamorado por uma doidinha que até hoje deve ir a passeatas do MST e coisas do gênero, fui à palestra para ver o que o gênio incontestável da MPB (e hoje membro da ABL!) tinha a dizer sobre esse assunto fascinantemente incompreensível. Mas se ele disse alguma coisa de aproveitável não registrei. Nem eu nem ninguém. Porque, sejamos sinceros, estávamos ali apenas para ouvi-lo cantar “Domingo no Parque”, “Refazenda”, “Drão” e “Andar Com Fé”.
A ver navios
No final das contas, pelo que me lembro Gilberto Gil cantou apenas as músicas chatas e ruins do disco novo (que estava à venda na saída do Auditório da Reitoria, claro). E eu fiquei a ver navios com a menina – como sempre. Mas o ponto não é esse. Estou contando essa história para que vocês percebam que a estultice suprema é produto de um ambiente acadêmico que considerava e ainda considera Gilberto Gil uma sumidade em qualquer assunto. Até em física quântica!
Pedra angular da nova direita
Foi isso, aliás, o que Bruno Tolentino acusou naquela famosa entrevista de 1996 e que meu amigo Josias Teófilo considera “a pedra angular da nova direita”. Já naquela época, há três décadas, Gil, Caetano, Chico Buarque et caterva eram considerados intelectuais pela nova elite. Uma elite que sequestrou o país e que em nada é diferente dos pobres. A não ser, claro, pelo dinheiro. Uma elite que hoje se orgulha de ouvir funk e que, veja só!, fundamenta decisões jurídicas com base numa música que rima “Helsinque” e “hot-link” – o que quer que seja isso – e que contém os seguintes versos:
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve um oriki do meu velho orixá
Ao porto de um disquete de um micro em Taipé.
E a Xuxa?
“Mas e a Xuxa?”, você pergunta. “Calma, cocada!”, respondo, para logo em seguida emendar que vi a citação de Toffoli e me lembrei do show-palestra de Gilberto Gil depois de assistir a um divertido vídeo em que meus amigos Filipe Trielli e Carlos de Freitas analisam exaustivamente o clássico “Super Xuxa Contra o Baixo Astral” (1988). Lá pelas tantas Trielli, num raro momento de perspicácia, diz que a mentalidade da esquerda brasileira atual está toda contida nessa obra-prima do cinema nacional.
Informação e ética
Ele tem razão e me espanta que os críticos culturais desdenhem para essas porcarias audiovisuais que vêm moldando o caráter nacional há décadas. Afinal, é impossível compreender como certas cavalgaduras alcançam cargos de prestígio e poder sem analisar o caldo cultural no qual nos banhamos todos, até porque esse negócio de falar mal da Globo é novo e antigamente o chique era se informar pelo Jornal Nacional e ter aulas de ética com expoentes como Dias Gomes, Aguinaldo Silva, Silvio de Abreu e Glória Perez.
Alto astral
Ou seja, estamos há no mínimo meio século engolindo essa visão infantilóide de um mundo ideal, onde não há qualquer tipo de conflito. Um mundo onde basta o “alto astral” de um Toffoli ou de um Barroso para pôr a sociedade no caminho da utopia comunoprogressista. E onde as pessoas são caricaturas de extremos ideológicos. Um mundo sem lugar para nuances ou dilemas e onde o ideal de liberdade é poder contrariar as ordens da mamãe e do papai – mas se sujeitar às ordens do Estado.
Ou não
Por falar em sujeitar, foram tantos anos sujeitando o brasileiro a uma intensa mediocrização sentimental do pensamento que deu tempo de transformar os baixinhos em empresários, publicitários, jornalistas, advogados, economistas, políticos – e até em ministro do STF dispostos a fundamentar uma decisão com base numa música tão tão tão ruim de um compositor tão tão tão supervalorizado que:
Eu quero entrar na rede
Promover um debate
Juntar via Internet
Um grupo de tietes de Connecticut
De Connecticut de acessar
O chefe da Mac Milícia de Milão
Um hacker mafioso acaba de soltar
Um vírus para atacar os programas no Japão
Ou não.