Houve um tempo em que os botecos eram templos da alienação. Beber uma cervejinha com os amigos, disputar animadas partidas de sinuca, se empanturrar de torresmo, rir de tudo e de todos como se não houvesse amanhã – era isso o que buscavam os frequentadores dos bares tradicionais, aqueles com ovos azuis e potes de rollmops. Transpor as portas de um boteco era deixar para trás, momentaneamente, as preocupações cotidianas e as manchetes de jornal.
Não mais. Agora o simples ato de pedir uma cerveja ou uma porção de frango a passarinho virou um “ato de resistência”. Resistência a quê? A Bolsonaro, ao capitalismo, ao racismo, à homofobia. Aquela ladainha toda da esquerda. Pelo menos é assim que pensam os administradores do Bek’s Bar, reduto tradicional dos simpáticos pinguços curitibanos que agora, sob a administração da “pichadora poética” Giovanna Lima, virou case para os estudiosos do capitalismo woke.
“Encontro a cura/ quando deixo a dor/ virar ternura”, escreve a poetisa e dona do boteco numa publicação recente. Na prática, contudo, o que se vê é que ela busca a cura transformando a dor em confronto. Diante da rejeição dos antigos clientes ao posicionamento político do “bar antifascista”, Giovanna dobrou a aposta no truco do capitalismo woke ao publicar que “cliente fascista é livramento” e que “cliente que apoia o genocídio de 500 mil brasileiros e outras milhares de atrocidades (grifos meus) definitivamente não fará falta”.
Mas, a julgar pelas publicações do bar nas redes sociais, toda essa postura de enfrentamento talvez seja a última cartada de uma verdadeira instituição do cenário botequeiro local que perdeu boa parte da clientela para os lockdowns cientificamente aleatórios do prefeito, quando não para a sensação desagradável de estar numa reunião do Partidão, e não num bar dedicado à celebração da amizade e da vida.
Luz no fim do túnel da falência
Ironia das ironias, é graças ao capitalismo (ainda que uma forma moralmente corrompida do capitalismo) que o boteco comunoprogressista encontrou uma luz no fim do túnel da falência. A começar pela publicidade gratuita que a dona consegue com suas diatribes políticas. Giovanna Lima parece ter percebido que a resistência ao fascismo, por mais imaginário que ele seja, é muito mais rentável para os negócios da família do que as pichações poéticas. Ironia ao quadrado: a citação ao bar neste texto é prova disso.
Além do marketing digital de guerrilha baseado no antibolsonarismo e no “fascismo do bem” expresso em frases como aquela de Hemingway que sugere que a companhia nas trincheiras importa mais do que a própria guerra, o boteco recorre aos meios capitalistas tradicionais para não fechar as portas. Ele está presente em aplicativos de entrega e, recentemente, vendeu camisetas que se rendem ao imperialismo idiomático estadunidense para provocar uma causa: “support your local boteco” [apoie o seu boteco local].
Comer no boteco tampouco é barato para os padrões curitibanos. Mas vale a pena dar uma caprichada na mais-valia quando o assunto é derrubar o presidente, não? Sem falar que, a julgar pela nova clientela politicamente engajada do boteco, essa gente jovem que não vê problema algum em brigar por seu político de estimação e cujo ideal de vida social é a solidão diante de uma televisão ligada 24 horas na Netflix, pagar um rim por uma porçãozinha de batatas fritas não vai fazer nem cócegas na mesada mesmo.
E o melhor: se tudo der errado, isto é, se a maioria dos clientes realmente concluir que não vale a pena beber uma cerveja estupidamente gelada se o preço a pagar por isso é ficar ouvindo groselha política, basta pôr a culpa pela falência no machismo, no patriarcado, na heteronormatividade e no ultraconservadorismo. E, por que não?, no capitalismo – bode-expiatório mais tradicional do que o torresminho que, no Bek’s, tem sabor de Lula.
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