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Polzonoff

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O que o tubarão-da-Groenlândia tem a dizer sobre a fala de Bolsonaro a um jornalista

Nada como um tubarão-da-Groenlândia, o vertebrado mais longevo do planeta, para nos dar um pouco de perspectiva diante das polêmicas cotidianas. (Foto: Reprodução/ Instagram)

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O tubarão-da-Groenlândia é o vertebrado mais velho do mundo. Em 2016, um biólogo submeteu amostras de 28 indivíduos da espécie à datação por carbono 14 e descobriu que um deles tinha inacreditáveis 512 anos. Como a datação por carbono 14 não é das coisas mais exatas do mundo, o tubarão podia ter “apenas” 272 anos.

Ainda assim, tamanha longevidade, em comparação com os meros 80 anos de expectativa de vida média de um ser humano, atiça a imaginação de qualquer um. Ah, todas as coisas que aconteceram na história da Humanidade desde que o tubarãozinho saiu da “barriga” da mãe, no remoto século XVI, para ganhar os mares gelados do Ártico.

Se não fosse só um vertebrado vivendo tranquilamente nas profundezas geladas, comendo um peixinho aqui e outro ali e interrompendo o banquete de vez em quando apenas para dar uma reproduzidazinha (porque ninguém é de ferro), o tubarão-da-Groenlândia teria visto naus colonizarem o Novo Mundo, o surgimento dos Estados Unidos, a Revolução Francesa, a Revolução Industrial, o naufrágio do Titanic, duas grandes guerras, bomba atômica, Stalin, Mao & a corja toda, a exploração espacial, a queda do Muro de Berlim e os atentados de 11 de setembro de 2001.

Eu lembro da moça bonita da praia de Boa Viagem

Aos 512 anos bem vividos, porém, é possível que o tubarão-da-Groenlândia, já meio senil ou simplesmente entediado, tenha se perdido na imensidão incompreensível das profundezas do Atlântico. Depois de pegar por engano uma corrente marítima, digamos que ele tenha cruzado o Equador e esteja agora mesmo nadando na praia de Boa Viagem, no ruidoso Brasil do ano da Graça de 2020.

Ele tira a cabeçorra para fora d’água, dá uma olhada rápida, se pergunta indignado “o que é que estou fazendo aqui” e se põe a conversar com os tubarões-tigres que habitam os recifes. Com a agressividade que lhes é característica, os tubarões-tigres vão logo ameaçando o tubarão-da-Groenlândia que, naquele instante, só queria mesmo instruções de como voltar para o conforto tranquilo, escuro, frio e monótono da sua terra, digo, mar.

Depois de um minuto de tensão no qual o tubarão-da-Groenlândia vê sua vida ameaçada pelo ímpeto violento dos primos mais jovens, impulsivos e rebeldes, e por algum milagre que só Poseidon é capaz de explicar, as duas espécies deixam de lado rancores insondáveis e estabelecem algo remotamente parecido com um diálogo.

Agitados e exibindo as muitas fileiras de dentes afiados, os tubarões-tigres, que vivem em média meio século, contam ao tubarão-da-Groenlândia o que acontece no Brasil – não a ilha mítica celta. “A coisa por aqui tá feia. Hoje mesmo o presidente disse que gostaria de encher de porrada a boca de um jornalista. O futuro é sombrio”, diz um deles. “Fala do Queiroz! Fala do Queiroz!”, pede o restante do cardume, cheio de entusiasmo.

Bolo de sardinha

A tudo o tubarão-da-Groenlândia ouve com a sapiência de quem já sentiu diluído na água fria o cheiro do sangue de muita gente. Sangue de inocentes e não tão inocentes assim. Sangue derramado por grandes conflitos que se perderam no tempo. Sangue de rebeldes com causas diversas. Sangue de heróis e gente simples que só estava indo de um lugar para outro, mas de repente se viram encurralados pela história.

Ele pensa no medo que os tubarões-tigres têm do tal futuro sombrio e ri. “E daí?”, pergunta o tubarão-da-Groenlândia, sentindo todo o peso de seus quinhentos e doze anos sobre a barbatana grisalha. “Por acaso as palavras grosseiras desse tal de Bolsonaro têm algum poder que desconheço? Ele mudará o curso das correntes ou as fases da lua? Ele impedirá que as ondas quebrem na praia? Eu só quero voltar para o conforto do Ártico. Alguém pode me dizer o caminho?”, pergunta o velho.

Atônitos, os tubarões-tigre se entreolham. Faz-se silêncio do raso dos arrecifes, mas dá para imaginar o que os tigrinhos cheios de ímpeto juvenil estão pensando. Que o velho é passapano, quando não gado, embora talvez não se deem conta da incoerência biológica do insulto. Um deles rosna seu rosnado aquático para o boomer alienado e perdido nas infelizes águas tropicais.

Mas a essa altura, ou melhor, profundidade o tubarão-da-Groenlândia já deu as costas aos tubarões-tigres ávidos por sangue. Rumo ao seu 513º aniversário. Com sorte, vai ter bolo de sardinha.

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