Conversa vai, conversa vem, o assunto pegou aquela estrada árida que leva à política. Afloram à mesa inofensivas declarações de repulsa pelo ex-presidiaríssimo presidente eleito, seguidas por uma mistura de tristeza e medo. Copos sobem à boca, olhos baixam ao chão. A melancolia recobre as deliciosas frituras (e a carne-de-onça) como uma nuvem de moscas. Até que alguém resolve propor um olhar semiotimista sobre o futuro governo Lula.
Antes de continuar com a história, contudo, preciso desobedecer os juízes racialistas do TSE e esclarecer que a cena se desenrola num passado cada vez mais distante. Do tempo em que havia esperança no que, por falta de expressão melhor, vou chamar aqui de “lógica política”. Do tempo em que havia esperança na análise histórica (oi, Rafael!). Enfim, do tempo em que havia alguma esperança.
Ao redor da mesa, os olhinhos de todo mundo brilharam para ouvir o argumento. Que, em linhas gerais, apelava para a vaidade de Lula. “Ele não vai querer entrar para a história como o homem que transformou o Brasil numa Venezuela”, disse o semiotimista. Para depois emendar que “uma hora o Lula vai perceber que o povo votou nele, pessoa física, e não no PT, e vai dar um jeito de jogar os radicais para escanteio”. (Como o telão transmitisse o jogo entre Marrocos e Portugal, convinha a metáfora futebolística).
Parece plausível, não? Pelo que se viu de 2002 a 2010, de fato Lula é um narcisista obcecado por seu papel histórico e sobretudo por sua imagem perante os grandes líderes mundiais. É o tal de complexo de vira-latas que, com o tempo, normalizamos. Como se esse servilismo fosse sinônimo de humildade. Não é. Ah, mas não é mesmo. “Então devemos depositar nossas esperanças na vaidade do Lula?”, pergunto, antevendo a resposta positiva.
Mas isso foi antes. Antes de Lula babar fel em seu discurso de diplomação. Antes de o Congresso se dobrar à vontade do apedeuta e mudar a Lei das Estatais para acomodar Aloízio Mercadante, o Dilmo de calças, no BNDES. Antes da decisão de acabar com toda e qualquer privatização. Antes de sugerir uma reforma tributária capaz de reparar “injustiças centenárias” – o que quer que signifique mais essa ameaça.
À mesa, o argumento semiotimista cumpre seu papel. Os ânimos se acalmam. Voltamos a sorrir e a cantar e a agradecer e a celebrar a alegria que é estar vivo. Que é estar cercado por pessoas boas, que querem o nosso bem. Diante daquele espetáculo que só posso chamar de “divino”, e ao som de mais um brinde, até cogito o contra-argumento tímido de que o grande adversário histórico de Lula é Getúlio Vargas, ainda hoje chamado de Pai dos Pobres, apesar da brutalidade da ditadura varguista. Mas me calo.
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