Sonhar é bom, mas se contentar com seu lugar no mundo é melhor. E, no mais, quem garante que seu sonho, uma vez realizado, será virtuoso?| Foto: Pixabay
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Todo mundo tem sonhos. À medida que a gente envelhece, contudo, os sonhos grandiosos da infância e juventude dão lugar a uma realidade povoada por sonhos mais palpáveis. Eu que já quis ser astronauta, por exemplo, me contentei em virar jornalista e, de vez em quando, ser ridicularizado por meus versos impublicáveis.

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“Contentamento” é uma palavra injustiçada. Ela soa como derrota, mas não é. Pelo menos não sempre. Contentar-se significa estar em paz com as consequências de suas ações. É diferente de “resignação”, palavrinha que pressupõe todo um rodízio de carne de sapo enfiado goela abaixo. Contentar-se é se saber feliz ocupando seu lugar no mundo. E eu sou.

Sonhadores são ótimos e muito bem-vindos, desde que não se tornem escravos dos sonhos. O revolucionário, por exemplo, é um sonhador corrompido pelo desejo de ter seus delírios concretizados. Todo revolucionário um dia sonhou em abraçar o mundo, mas, por algum motivo, esse desejo foi pervertido e ele passou a desejar controlar e transformar o mundo – o que é uma receita clara para destruição.

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Empreendedorismo metafísico

Falo de sonhos com muita facilidade e alguma propriedade. Tive todos os meus sonhos de infância e juventude realizados. Menos o sonho de ser astronauta, até porque hoje reconheço que não era um sonho verdadeiro, e sim uma fantasia insuficientemente convincente para a criança cheia de energia e possibilidade que fui.

Tenho pensado bastante no assunto ultimamente. Porque percebo que, entre xingamentos e piadas, as redes sociais são fontes inesgotáveis para quem se interessa em estudar o desejo humano, que ora se manifesta na inveja descarada, ora num empreendedorismo metafísico. A primeira, mais comum, vou ignorar neste momento. São os sonhos tornados realidade por uma mistura de sorte e trabalho que chamam minha atenção.

Falar de sonhos pressupõe também falar em frustração. A sensação de fracasso que, na maioria das vezes, o tempo trata de mostrar que escondia um “sucesso”. Porque nossos sonhos não raro são falhos e, quando motivados por pecados (ou vícios, se preferir), tendem a se revelar como pesadelos com consequências muito concretas no mundo real.

Digamos, por exemplo, que você sonhe em ficar rico. Em ganhar na Mega-Sena da Virada, por exemplo. Quem não sonha com isso? E, no entanto, se depois de consultar o volante e descobrir que não acertou nenhum número você parar para pensar, talvez perceba que foi melhor assim. Afinal, se você tivesse todo o dinheiro do mundo, seria mesmo uma pessoa feliz como imagina e sonha ou só se transformaria numa pessoa preguiçosa?

Libertador

Questionar os reais objetivos do próprio sonho pode ser libertador. Digamos que você seja daqueles que sofrem por amor e está aí todo tristão assistindo à GloboNews e maldizendo o Universo. Se você tivesse todas as mulheres do mundo (& variações sobre o mesmo tema), será que você se sentiria realmente amado ou seria só um libertino obrigado a encarar aquele vazio tenebroso das manhãs seguintes?

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Aquilo que julgamos fracasso, e isso os livros de autoajuda não dizem, muitas vezes são uma expressão da Graça – para quem nela acredita – ou da sorte. Digamos, por exemplo, que você está com a autoestima “na reserva” ou que você leia Tabacaria, de Fernando Pessoa, e se detenha naqueles versos que falam sobre a irrelevância do indivíduo. Eu lhe perguntaria: se você recebesse todas as honras do mundo, seria uma pessoa plenamente realizada ou se transformaria num vaidoso arrogante cheio de si?

E mais: se você tivesse toda a saúde do mundo, seria uma pessoa produtiva ou desfilaria por aí se achando imortal? Se você fosse digno de toda a justiça do mundo, se sentiria em paz ou vingado? Se seus inimigos fossem calados ou simplesmente eliminados, você se sentiria vencedor e iria passar uns dias no Taiti para descontrair ou sairia logo à procura de outros inimigos para calar ou aniquilar?

E, só porque sempre sonhei em terminar um texto com um enigmático “etcétera” ecoando na eternidade: etcétera. Etcétera. Etcétera.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]