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É meu amigo Guilherme Fiuza quem faz as vezes de Virgílio e comigo adentra os portões deste inferno imaginário. Com sua voz portentosa, me aconselha o nobre poeta a abrir os olhos, furar a bolha e escutar o ganido lamentoso das almas a manifestar apoio a Alexandre de Moraes e sua tirania particular em defesa de uma noção de democracia tão repugnante que até as aspas recusa.
“A verdade é que Alexandre de Moraes conta com o apoio de muita gente que acreditou na narrativa de que Bolsonaro representa uma ameaça à democracia”, diz ele. Ao que respondo na melhor tradição dos versos revoltosos hiper-realistas da poesia soviética: “Não pode ser!”.
“Vem que eu te mostro!”, convida Fiuza. É aí que me dá a mão o bardo-artilheiro das peladas do Aterro e, com uma mesura algo exagerada, aponta para os grandes portões que se abrem para aquele mesmo inferno retratado por Dante no século XIV. Me empolgo todo com a possibilidade de trocar umas palavras com il sommo poeta. Mas, como o florentino está há séculos no Paraíso reservado aos que glorificaram a Deus exaltando a beleza das palavras, me contento em ser recebido na portaria do inferno por outro poeta, curiosamente um trocadilhista curitibano meu xará. Coisas do Além.
Claro que para entrar no inferno é necessário prestar reverência à burocracia e preencher cinco mil formulários, reconhecer firma, pagar custas cartoriais. E não se esqueça do comprovante de endereço, hein! A papelada, porém, vale a pena e, acrescida de um pixuleco, nos dá acesso ao recém-inaugurado anexo reservado aos apoiadores de Alexandre de Moraes, onde finalmente podemos observar o sofrimento dessa fauna trevosa.
Sexto círculo
No círculo mais externo, chamado O Sexto, ficam os distraídos, aqueles que apoiam Alexandre de Moraes de orelhada ou só porque “ouvi falar bem dele na televisão”. Nessa mistura também cabem aqueles que aplaudem tudo o que Alexandre de Moraes fez, faz e fará, passando por cima de todos os limites constitucionais, só para conquistar aquela paquerinha, sabe? (O pessoal ainda fala “paquerinha”?). Qual o sapo que morre sem perceber que a água ferve lentamente, eles são cozidos no fogo brando da própria ignorância.
Ou como se lê nos célebres versos de Dante:
Nesse primeiro círculo, coitados,
os úteis idiotas distraídos,
são feitos e desfeitos pelo Estado,
suspensos num espeto são cozidos.
"- Cozidos? Não assados?" O Cão vive
de cozer idiota no palito.
Quinto círculo
À medida que avançamos rumo ao círculo mais profundo deste anexo infernal vamos encontrando personagens mais perversos. Deixando para trás os idiotas úteis, com sua alexandrofilia distraída, nos deparamos, Fiuza e eu, com os maquiavélicos. Eles marcham eternamente sobre ruas pavimentadas com exemplares flamejantes da Constituição, empunhando cartazes de chumbo nos quais se lê “É errado, mas é para salvar a democracia!”. A fim de saciar a sede de vingança que confundem com justiça, bebem fel.
Ou como se lê nos célebres versos de Dante:
Ali, os ardilosos. Maquiavel
até se espanta com tamanha astúcia:
vendem a alma pra não ganhar o céu.
No inferno, engolem fel (veja a minúcia):
demônios esquerdistas num tonel
os afogam nas fezes da mãe Rússia.
Quarto círculo
Já no quarto círculo a perversidade cheira a enxofre misturado com soberba. Aqui Fiuza e eu encontramos antibolsonaristas psicóticos que reconhecem que Alexandre de Moraes toma decisões prejudiciais ao país, mas “tudo é válido contra Bolsonaro” – nas palavras de um dos condenados.
Que nos levanta os olhos em meio a seu suplício eterno: receber de volta todo o mal que desejou a seus adversários políticos. Uns são humilhados com memes e trocadilhos e citações de Márcia Tiburi. E estes são os que sofrem menos. Num canto, me chama atenção uma banquinho de pregos no qual se lê “Reservado para Janones”.
Ou como se lê nos célebres versos de Dante:
Desçamos mais um pouco, meu amigo,
os círculos são muitos. Neste aqui,
os perversos recebem seu castigo:
da testa ao calcanhar, um bisturi
os retalha do modo mais antigo,
o mal que desejaram volta a si.
Terceiro círculo
Aos poucos avançamos rumo ao círculo central. No terceiro círculo, o cheiro é inconfundível: carne queimada. Ao entrarmos no salão macabro, porém, o único sinal de fogo que vemos é o da fumacinha fedida que sai dos orifícios dos condenados, cada qual uma chaminezinha de causas perdidas. São os revolucionários, aqueles que manifestam apoio a Alexandre de Moraes apenas porque querem ver o circo pegar fogo. Ou a onça beber água.
Ou como se lê nos célebres versos de Dante:
O diabo gosta desses, os bombinhas.
Desejam só que o circo pegue fogo.
Então no fogo o Cão põe as alminhas.
Mas é fogo especial: de demagogo,
começa nas entranhas, sobe a espinha
em labaredas pra apurar o logro.
Segundo círculo
Estamos quase lá e, enfim, um círculo divertido. Aqui bem pertinho do vórtex alexandrino estão os que idolatram Alexandre de Moraes, exaltando sua sagacidade e coragem em defesa da democracia. São aqueles que pedem até estátua do ministro em praça pública, diante das quais talvez pretendam sacrificar ritualisticamente a própria honra e principalmente aquela Verdade que se escreve com “v” maiúsculo. Condenados eternamente a bancar o lado equestre do monumento, relincham e trotam os danados de lá para cá com um boneco calvo de granito às costas.
Ou como se lê nos célebres versos de Dante:
No lugar do cavalo pôs um jegue -
a estátua do jeguinho com a besta,
mas um demônio diz: - Você, carregue-o!
E a besta leva o jegue na cabeça,
por toda eternidade ela prossegue.
Idólatra, no inferno, pasta a xepa.
Círculo central
Finalmente entramos no gabinete escuro que fica bem no meio do Reino da Desesperança. De repente eu e meu guia ouvimos aquela voz, com aquele sotaque. Um olha para o outro que olha para o um. Eis que do breu emerge a figura caricata, com a inconfundível calva que reluz mais do que o intelecto. Diante do nosso silêncio curioso, o homem estufa o peito para celebrar os frutos podres da sua arrogância. Os distraídos, os maquiavélicos, os perversos, os revolucionários e os idólatras serão para sempre escravos dele.
Ou como se lê nos célebres versos de Dante:
Lá embaixo, no centro de si mesmo,
em círculos concêntricos de gás,
o grande, o maioral, o Zé Torresmo,
o que manda e desmanda, o contumaz,
careca de saber dos desgovernos,
o maior, pai de todos, Satanás.
Na saída do inferno dantesco, uma surpresa: eu e Fiuza encontramos Rodrigo Constantino. “Vem comigo, Polzo! Quero te mostrar uma coisa”, convida ele com seu inconfundível timbre de voz. Como estou à toa e não me ocorre nada melhor para fazer àquela hora, aceito o convite.
Depois da experiência pelo inferno supremo, estou crente que Constantino me guiará pelo Purgatório dos isentões ou por um cantinho do Paraíso reservado a alguma improvável ideologia virtuosa. Mas não. Seguimos por becos e vielas e dobramos várias vezes à esquerda, de novo à esquerda, mais uma vez à esquerda, esquerda, sempre à esquerda, até que chegamos a um destino tão ou mais macabro do que aquele que acabei de deixar para trás: o inferno a que são condenados os petistas.
* Os versos que emulam Dante Alighieri nessa minha despretensiosa Suprema Comédia são de autoria do meu grande amigo e poeta maior ainda João Filho, autor do obrigatório "Um Sol de Bolso" e também do poema-reza que serve de epígrafe para meu espaço aqui na Gazeta do Povo. Se você é uma pessoa estranha, dessas que ainda aprecia poesia de altíssima qualidade, não deixe de acompanhar o trabalho de João Filho pelo Instagram.