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O vídeo rodou todos os infinitos caminhos da Internet no fim de semana. Numa rua deserta, um casal é abordado por dois homens numa moto. O casal está contra um muro alto e sob a mira de uma arma. De repente, vem pela rua um carro branco. Ao perceber o assalto, o motorista dá uma guinada brusca e acerta a moto por trás, lançando os bandidos longe e os arrastando por alguns metros. Ao se ver salvo, o casal sai correndo. Os bandidos se levantam e, até onde se sabe, vão a um hospital. Nada se sabe sobre o salvador/atropelador.
Ao ver aquela imagem sem som, mas com várias camadas de violência, a primeira coisa que me ocorreu foi me perguntar se eu faria algo parecido. Matutei, matutei – e nada. Mostrei o vídeo para a minha mulher e a alguns amigos. Uns bateram no peito e disseram que atropelariam os bandidos sem dó nem piedade, mas depois voltaram atrás. Outros disseram que não, jamais fariam algo assim, mas depois voltaram atrás.
As dúvidas nascem de uma combinação de fatores. Primeiro, das peculiaridades da cena e das muitas variáveis sem resposta para o observador. Se o motorista por acaso tiver algum tipo de relação com as vítimas, por exemplo, a coisa muda de figura. Sem contar que vivemos num país onde a violência é uma constante e, por consequência, há uma demanda maior por justiça. Depois há o fato de dispormos de tempo, algo que o motorista não tinha. Aqui vou precisar abrir um parágrafo.
Dizia eu que o motorista não dispunha de tempo. Ao mesmo tempo, ele dispunha de todo o tempo do mundo. O paradoxo me fascina. Porque, sim, dá para ver pela imagem que ele tomou a decisão de atropelar os bandidos por impulso. Num átimo, como dizem os causídicos. Pelo menos a guinada brusca sugere isso. Ao mesmo tempo, esse tipo de decisão, ao envolver tantos preceitos morais, foi tomada há muito tempo pelo motorista – e à revelia de suas sinapses momentâneas e embriagadas de cortisol e adrenalina. Isto é, a decisão de salvar ou não alguém de um ato de violência cometendo outro ato de violência é algo anterior ao próprio ato.
Há um terceiro fator que merece ser mencionado: o prejuízo material e jurídico de se lançar um carro sobre bandidos. Que (e este detalhe é importante) ainda não consumaram o crime. A seguradora dificilmente arcaria com os custos de um conserto decorrente de um choque intencional. Além disso, é bem possível que o motorista venha a sofrer algum tipo de investigação sobre o caso. Se tudo correr bem, ele terá sua inocência (aos olhos da lei) constatada, mas o risco de uma condenação não é exatamente zero. Sem falar nos custos envolvidos na defesa.
Por fim, há a questão das alternativas. Ou seja, partindo do pressuposto de que atropelar os bandidos é errado, que atitude caberia ao motorista? Ele deveria cometer uma infração de trânsito e ligar imediatamente para a polícia? Ou deveria estacionar antes? Ele deveria ter um papo com os bandidos, expondo os riscos envolvidos naquele gesto? Ou quem sabe ele deveria agir fisicamente de modo a não pôr em risco a vida dos assaltantes, sem atropelá-los, mas, de alguma forma, impedido o assalto? Enfim, qual seria a atitude moralmente correta neste caso?
Boas intenções e probabilismo
Sei que vivemos num país violento e com sede de justiça. Por isso, sei também que você deve estar com coceira no dedo para recorrer à caixa de comentários e dizer que, sem dúvida nenhuma, atropelaria os bandidos. Mas me deixe tentar pôr um pouquinho mais de dúvida na sua cabeça.
Conversei nesta manhã com um padre, cujo nome vou omitir aqui porque o WhatsApp caiu, impedindo que ele me desse autorização para citar seu nome. “O que parece na cena é que o motorista do carro, mesmo querendo evitar um assalto, quis fazer justiça com as suas próprias mãos. Mesmo que a intenção fosse boa, a de evitar o assalto, houve uma reação desproporcional. Ele evitou o assalto colocando em risco a vida dos assaltantes”, disse-me o padre. “O motorista pode ter agido movido pela paixão do momento, o que diminui a gravidade, mas não torna essa ação, em si má, uma ação boa. Não basta a boa intenção. A ação tomada deve ser boa e proporcional. O que não ocorreu”, completou.
Outro amigo, o professor Rafael Ruiz (que me deu autorização para citar o nome antes de o WhatsApp cair), disse de pronto que não agiria como o motorista do vídeo. E, antecipando-se à reação dos que defendem o atropelamento, disse que “a maior parte dos argumentos a favor se baseia numa antecipação do futuro, na “presentidade” de uma probabilidade. Na verdade, não sabemos como se desenvolveria a ação. E eu nunca faria um mal certo para evitar um mal possível”.
Ruiz explica ainda que nossas dúvidas e certezas têm raízes no probabilismo. “Dentro do probabilismo entendia-se que, para 'fazer o bem', eram possíveis diferentes ações, desde que fossem prováveis e prudentes. Atropelar alguém, mesmo no caso de evitar um mal possível, não é nem prudente nem provável, até porque o atropelamento certamente é um mal e pressupõe uma morte provável. O que se queria evitar pode dar em morte ou não, pode ficar apenas no roubo ou pode resultar numa fuga da moto. Há mais probabilidades certas de fazer a coisa certa, que não é mesmo atropelar”, disse.
O que eu faria
Ao me colocar no lugar do motorista, percebi que responder objetivamente à questão se eu atropelaria ou não os assaltantes é praticamente impossível. Justamente porque eu (assim como o padre e o professor) disponho de tempo para refletir sobre minhas atitudes e as consequências dela. Ao entrar na rua deserta e ver um casal ameaçado por bandidos armados, não sei se prevaleceria o que sei hoje sobre probabilismo. Tampouco sei se ponderaria a respeito dos prejuízos materiais e das consequências jurídicas do ato.
Por isso disse lá em cima que a decisão é uma decisão tomada na hora, mas formada muito, muito antes de o carro entrar na rua deserta. O que me traz à memória a figura de Meursault em “O Estrangeiro”, de Albert Camus. O personagem, que já se sente estranhamente julgado pelo mundo por não chorar no enterro da mãe, vai dar uma volta na praia e, estressadíssimo e cansado, se vê numa situação de confronto. Resultado: o sol refletido numa pedra lhe atinge os olhos e ele acaba matando um homem que o ameaçava com uma faca. Por isso Meursault é condenado à morte.
Será que Meursault teria se deixado levar pelo sol refletido no rosto se estivesse convicto de que a violência é sempre errada? Que princípios (ou falta deles) estão envolvidos numa decisão aparentemente tomada ao acaso ou por impulso? Mais: será que, se morasse num país violento e numa época em que a violência é onipresente, Meursault botaria a culpa no sol e alegaria inocência? Ou bateria no peito, alegando legítima defesa, quando não coragem e heroísmo?
E hoje eu ia dizer que excepcionalmente encerrarei o texto com um ponto de interrogação para, agora sim, você correr até a caixa de comentários e dizer o que faria numa situação semelhante. Mas, como se percebe daqui a cinco palavras, não foi desta vez.