No meio dessa discussão surreal sobre o escanteamento da fé sugerido pelo cristão envergonhado e agora ministro do Supremo Tribunal Federal, André Mendonça, me deparo com a mais desavergonhadamente cristã entre as crônicas de Fernando Sabino. Uma narrativa tão simples, clara e contundente em sua cristandade que, para ser sincero, estou até com vergonha de ter chamado André Mendonça de “cristão envergonhado” na frase anterior.
Está num livro que comprei por acaso e engano, contendo as 50 melhores crônicas selecionadas pelo próprio Fernando Sabino. É uma coletânea curiosa pela ausência (até onde cheguei) de textos políticos. Por isso ao leitor contemporâneo os textos podem soar chatos ou ortodoxos em sua proposta de contemplar a vida cotidianamente, vendo no homem um homem, e não um amontoado de identidades políticas.
Sem querer dar uma de João Kléber aqui, vamos à crônica. Ela se chama “Um Doador Universal” e tem como personagem principal um taxista carioca lá daquele jeitão dele, meio grosseiro, meio atrevido, meio ruidoso demais para meus ouvidos curitibocas. Acontece que, na crônica, esse homem tão cheio de defeitos óbvios parece ter acordado a fim de fazer o bem. Primeiro ele se dispõe a doar sangue. “Para doar sangue não precisa ter cara, basta ter sangue. E doar mesmo de graça, ali no duro. Deus me livre de vender meu próprio sangue: não paguei nada por ele. Escuta aqui uma coisa, quer saber o que mais? Vou doar meu sangue e é já”, diz o taxista.
Chegando ao hospital, porém, taxista e passageiro se deparam com uma mulher que precisa de um táxi para transportar o marido que tinha quebrado a perna. Depois de alguma hesitação, o taxista decide deixar a doação de sangue para o outro dia e transportar o homem com a perna quebrada. “Está bem. Mas então faço o serviço completo: vai de graça. Vamos embora. Cadê o capenga?”, pergunta o taxista.
Fazer o bem é fácil
Cheguei ao ponto final da crônica de míseras duas páginas e meia e a reli. E tresli. E, parecendo um precoce vovô Simpson resmungão, gritei para as nuvens da tempestade que se anunciava que eu tinha que – tinha quê! – escrever sobre isso. Por mais que meus leitores, infelizmente, já tenham dado sinais claros de que não se interessam por essa parte mais, digamos, lírica do meu trabalho.
Tinha que escrever sobre a crônica porque é a tal coisa: fazer o bem é fácil. Basta acordar disposto. Não há (ainda) decisão do STF que proíba a caridade. E, se um dia houver, que se dane: ao longo da história grandes feitos de bondade sempre foram feitos às escondidas e à margem da lei. E nem por isso eles deixaram de ser certos. Os muitos judeus abrigados por vizinhos em porões e sótãos sabem bem disso.
A maldição do nosso tempo é que tudo conspira para abafar o bem pequeno, aquele que se faz sem alarde e, muitas vezes, sem nem mesmo motivo. O bem que se faz porque se quer. Como o do taxista da crônica de Fernando Sabino. Se aquela época fosse assombrada pelo mesmo Zeitgeist que arrasta correntes hoje em dia, o taxista talvez só doasse sangue se tivesse algum incentivo estatal. E talvez só levasse o homem de perna quebrada para casa se pudesse correr para as redes sociais a fim de levantar a hashtag #bomporumdia ou #entãoésobreisso.
Ou pior: talvez nem passasse pela cabeça dele a possibilidade de fazer o bem ao seu semelhante, o indivíduo, sem que isso causasse qualquer arranhão nessa abstração diabólica chamada “Humanidade”. Sem transformar o mundo, como nos ensinaram os marxistas.
É, sim, possível fazer o bem discretamente, sem ganhar um mísero like – imagina o absurdo! Sem nem mesmo ser reconhecido como uma pessoa boa por alguém. Aqui se doa sangue, ali se ajuda um cego a atravessar a rua. Aqui se opta por não xingar, ali se pede desculpas. Afinal, foi assim que o Cristianismo, não esse que uns e outros professam envergonhados, realmente moldou o mundo que por ora temos o privilégio de habitar.
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