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Lá pelas tantas ela interrompe a programação normal, se vira para mim e, com toda a ingenuidade e sinceridade de seus belos olhos castanhos, me pergunta se fiz alguma bondade na vida. Ah, essa é fácil, penso. Abro um sorrisão de dentes tortos e amarelados pelo tempo, certo de que vou encontrar no sótão da memória cem mil exemplos a provar, de uma vez por todas, que sou aquilo que há muito julgo ser: uma pessoa inquestionavelmente boa e, se calhar, destinada a todas as benesses do Paraíso.
Mas os segundos avançam e... nada. Tento dar uma de espertalhão e, enquanto abro enlouquecidamente todas as caixas que podem conter um precioso ato de bondade (tem que estar aqui em algum lugar!), proponho que se defina “bondade” – o que é bem mais difícil do que parece. A estratégia dá certo e eu ganho tempo. Depois de muita conversa e algumas risadas, chegamos a uma definição mais ou menos óbvia: bondade é um gesto puramente desapegado, algo que você faz pelo bem em si, sem receber nada em troca, nem mesmo (e sobretudo!) aquela autogratificação do dever cumprido. A bondade é uma transubstanciação da humildade.
Assim munido deste mapa, lá vou eu mais uma vez abrir caminho pelas teias de aranha e revirar caixas no sótão da memória. Minhas lembranças estão um caos e em algum momento eu preciso organizar isso daqui. Talvez em ordem cronológica. Talvez em ordem alfabética. Os minutos passam. Nada. Mas será possível chegar aos 45 anos sem ter cometido nenhum ato de bondade?
Pior: será que isso faz de mim uma pessoa má? Penso, por exemplo, em todas as "verdades" que acho (acho!) que já disse. Se é que eram verdades mesmo. Dizer a verdade é um ato de bondade, não? Não. As verdades que me vêm à mente não servem como exemplo de bondade. Porque algumas verdades feriram sem querer e outras verdades foram ditas para ferir. Além do mais, tem a coisa da autogratificação. Ninguém disse ou diz a verdade sem receber em troca uma boa dose de serotonina pela demonstração de honestidade e coragem.
De repente entro num labirinto de ecos e lembranças e penso nas mulheres que amei ou gostei ou só desejei e, bom, ninguém ama, gosta ou deseja uma mulher sem receber amor, gostura (!) ou desejo em troca. E você aí deve estar pensando que luxúria e sonhos românticos nada têm a ver com bondade - com razão. É que entrei numa sala proibida das memórias e me deixei ficar. Atordoado, nem sei direito como cheguei à epifania de que nem mesmo o amor de um pai por um filho é realmente humilde se a gente só ama para ser admirado.
De volta à questão dos atos de bondade. Bate o desespero e começo a pensar em todas as coisas estupidamente boas que já fiz na vida. Doar sangue, por exemplo. Ou será que doei sangue só para ter direito à meia-entrada no cinema? Ajudar um cego a atravessar a rua. Dar esmola. Abraçar alguém num velório. Lavar a louça sem ela pedir. Ligar só para perguntar como a pessoa está. Ou para pedir desculpas. Dar bom dia a um estranho na rua.
Mas todas as bondades que encontro estão recobertas pela craca de um ou mais poréns (ah, porém!). Até que, cansado de abrir caixas para encontrar apenas nacos da minha porção mais soberba, desisto. O assunto entra em coma e vamos dormir. Antes de dar início à Sinfonia do Ronco em Fá Maior, me convenço por um segundo de que, embora não seja uma pessoa má (ninguém acha que é), tampouco sou uma pessoa boa, no sentido de “alguém que cometeu um ato de pura bondade”. Mas ainda dá tempo de mudar isso, penso, entre bocejos e esperanças.
Até que o superego parece deixar a chibata de lado, me chama para um canto e me diz que não é nada disso e pare de ser tão duro consigo mesmo! Assim, a conclusão a que chego antes do sono é um consolo. Me levanto na cama, pigarreio dramaticamente e, para o quarto silencioso (a Catota levanta a cabeça, mas logo volta a dormir), começo: “Os atos de bondade, de bondade verdadeira, são aqueles quando estamos tão ocupados em sermos bons que nem percebemos. E, no final das contas, quem é bom só para se vangloriar não está sendo bom coisa nenhuma. Você não acha mesmo que eu faria uma coisa dessas, né?”.
Me deito todo orgulhoso, crente de ter feito um discurso digno de Cícero. O "né?" paira no ar como eco de um pronunciamento ridículo. Ao que ela me responde com um “ãhn?” grogue de sono. Como um menino que decora o primeiro poeminha na vida, respiro fundo, emposto a voz e recomeço: “Os atos de bondade...”. Mas sou interrompido pelo ressoar baixinho e pacífico dela. Um som cuja calma e vulnerabilidade contêm em si todos os atos de bondade cometidos e ainda por se cometer. “Boa noite. Dorme com Deus”, digo, sabendo que ela já foi e eu em breve.