Nunca fiz história. Deve ser estranho fazer história.
Quero dizer, cada um faz história pequena, minúscula, insignificante e ao mesmo tempo significantíssima ao longo de toda a vida. Quando deixamos de usar fraldas. Quando vamos à escola pela primeira vez. Quando aprendemos a ler e a escrever. Quando partimos o coração de alguém. A rigor, fazemos história até sem perceber, quando dizemos alguma coisa que, sem que saibamos, será determinante na vida de nossos filhos.
Mas história-história, aquela que se costuma grafar com agá maiúsculo, nunca fiz. Nunca tive a oportunidade e, se tive, confesso que estava distraído demais para notar. Encaro a história como um espectador de futebol: deve ser legal estar em campo na final da Copa do Mundo, correndo, driblando, acertando um passe e errando outro, e até fazendo gol. Mas eu ainda prefiro um lugar à sombra na arquibancada.
De onde imagino os mais delirantes cenários, como um improbabilíssimo gol de bicicleta de um jogador que não sabe nem bater lateral ou uma goleada tão elástica que o jogo há de ser imortalizado nos anais do esporte e eu poderei dizer: “Eu estava lá e vi tudo”. Isso quando não fico elucubrando sobre os motivos que levam multidões ao estádio. Seria o jogo, com sua profusão de acasos e decisões certas e erradas a todo instante, uma forma muito interessante de representar o próprio Universo?
É esse tipo de coisa que imagino ao observar o futebol e a história. E, não sei se você sabe, mas hoje o ex-juiz e agora ex-ministro Sérgio Moro fez história. História-história.
Eu de política-política entendendo pouco. E, curioso, quanto mais leio sobre filosofia política, menos entendo a política-política. Sei lá, mas manobras de xadrez que uns pacientes amigos apontam como exemplos de estratégia magistral me soam todas estranhas (sempre gostei mais de mahjong). Política é um dos poucos assuntos nos quais sigo os conselhos de Polônio e ouço mais do que falo. Às vezes, como hoje, não resisto e faço um comentário irônico ou um trocadilho bobo, mas logo em seguida apago tudo. Não nasci para isso.
Prefiro acompanhar, distante, as reações das pessoas, individualmente ou em grupo. Como são fascinantes os seres humanos, não? Ora são cardumes, ora peixinhos solitários vagando num oceano sempre hostil. Cada qual com sua raiva, seu ressentimento, sua alegria, tristeza ou decepção.
Mas tergiverso. Queria dizer mesmo que deve ser estranho fazer a história. E, nessas horas, sempre imagino o Personagem Histórico em seu momento mais íntimo, sem câmeras ou assessores por perto. Só ele e sua consciência. O homem no seu todo, desprovido, na solidão de uma sala ou até do banheiro, da necessidade de causar uma impressão. Existindo só para si.
O que teria feito Sérgio Moro depois de dizer o que disse e da forma que disse? Será que ele soltou um longo suspiro e começou a empacotar as coisas? Eu o imagino andando a passos pesados, porque todo Personagem Histórico de certa forma carrega ou imagina que carrega o mundo nas costas. Os bajuladores de sempre tentam se aproximar, mas ele pede para ficar sozinho. E segue por um corredor até seu gabinete, onde vai ter alguma privacidade.
Ele pede à secretária para não ser incomodado, ao que ela responde com um meneio silencioso. Ele consulta o celular e vê centenas de mensagens não lidas. Pensa na mulher. Nos filhos. Será que ele sabe que está circulando o meme do “Moro já é comunista na Austrália”? Será que ele ri? Não. Não agora. Ele fica ali na cadeira de trabalho, olhando o cenário que talvez tenha sido decorado por um discípulo de Niemeyer. E fica relembrando as próprias e emblemáticas frases que no momento estampam os portais de notícia.
Até que vê um porta-retrato. O porta-retrato. Se levanta e percebe que não tem nenhuma caixa de papelão por perto. Com o porta-retrato valioso (não pela moldura; pela foto) na mão, ele sai à procura de uma ou várias caixas, pensando simplesmente: “Preciso começar a empacotar as coisas”.
Deve ser estranho fazer história. Ser parte ativa do processo. Falar pela primeira vez uma frase ou uma ideia que ecoará pelos dias, semanas, anos, lustros e décadas seguintes. Deve ser estranho ter sua imagem associada a um acontecimento qualquer que afetou a vida de milhões de pessoas – nem que o efeito tenha sido apenas uma tarde perdida diante do computador, discutindo política. Deve ser estranho ter um momento da sua vida gravado no granito inquebrável do tempo e não poder ser esquecido, não poder voltar a ser apenas o Cidadão Comum.
Não poder optar por ser aquele nada que tem em si todos os sonhos do mundo de que fala Fernando Pessoa.
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