Eu já havia percebido a movimentação estranha lá em casa. E foi minha mãe, em uma daquelas conversas despretensiosas logo depois do almoço, quem levantou a questão. Pelo entra e sai de passarinhos na garagem, a nossa cadelinha, Juraci, deve ter proclamado sua própria aposentadoria.
A passarinhada tem feito a festa na garagem lá de casa. Entram em bandos. Três, quatro, cinco pequenos baderneiros por vez. E o alvo é sempre o mesmo. O canto onde ficam os potes de ração e água da Juraci. Ali eles encontraram o parque de diversões deles. Com esse calor, o pote de água virou o clube social, o piscinão dos bichinhos. Ali a turba se refresca.
Até presenciei um bem-te-vi se arriscando em umas braçadas – ou, melhor, asadas – medley. Podem até duvidar. Mas que dava pra ver claramente o peito amarelão do bicho na hora do estilo costas, isso dava. Era o Michael Phelps dos bem-te-vis.
Outro dia, levei um susto com um deles. Mais assustado ainda ficou o bicho. Entrou em pânico ao me ver. Passou a voar sem direção. De tão nervoso, chocava-se nas paredes e no teto. Bateu várias vezes a cabeça. Ficou tonto e se estatelou no chão.
Peguei o figura – não sou entendedor de passarinhos, mas pelas fotos que vi na internet, era bem parecido a um sábia-laranjeira -, esperei que ele se recuperasse e o soltei no quintal. Que retomasse logo seu destino. Que, no caso, muito provavelmente seria novamente a minha própria casa em breve.
Se fosse uns anos atrás, não sobraria muito desse passarinho. Porque houve um tempo em que a Juraci não admitia esses intrometidos nas cercanias de nossa casa. Houve um tempo em que ela era ágil. Corria rápido e sem se cansar. Saltava sem sentir os atritos nos ossos.
Um tempo em que se a passarinhada bobeasse, estaria com os dias contados. Não foram poucos os minúsculos cadáveres que recolhi na grama do quintal. Todos vítimas da “carrasca” Juraci.
Mas isso já faz um tempo. Agora, a passarinhada abusa. Ela nem se dá mais ao trabalho de se levantar e tentar correr atrás deles. Indo pra 15 anos de idade, a pobre sabe que nunca mais vai alcançá-los.
Não que eu seja defensor da morte dos passarinhos. Não sou nenhum sádico – no caso, ornitosádico. Longe disso. Acho até graça das palhaçadas que eles fazem.
O que me deixa triste é que, com o peso da idade, a Juraci já não é mais a mesma. O instinto ainda está nela. A vitalidade, não mais.
Dias desses, os baderneiros faziam das suas a menos de dois metros de onde ela estava deitada. Ao presenciar aquilo, resolvi chamá-la pra um particular. Argumentei que ela não poderia desistir assim tão fácil. Que deveria ao menos tentar, apesar dos pesares.
Lembrei das façanhas do passado, de quando ela não dava nem tempo de esses folgados pousarem. Assim que chegavam perto do solo, ela corria pra afastá-los. E ai daquele que não fosse mais rápido do que ela.
Falei, mas ela deixou claro que não tem mais condições. Não dá. Está velha. Quer apenas descansar.
Entendi o recado.
Depois disso fui ler os jornais. A Juraci veio junto. Entrou de mansinho, passos leves, balançando o pitoco de rabo.
Sentou-se ao lado da cadeira e ficou me olhando com uma cara feliz, orelhas pra trás, como se estivesse sorrindo e me dizendo: “Fica tranquilo, Marquito. Posso até ter desistido de correr atrás dos passarinhos. Mas nunca vou desistir de você e da tua família. Sempre vou estar do teu lado”.
Foi então que tive certeza de que estava errado: cachorros não se aposentam.