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Ele é bo-ni-to!

Falipe Mayerle

Tenho amigos que dizem que certas coisas só acontecem comigo. Passagens corriqueiras, que na vida dos outros passariam despercebidas, na minha muitas vezes ganham contornos de anedota. Ao ponto de eu sempre ficar atento à possibilidade de alguma câmera estar me filmando ou de o Ivo Holanda sair de algum lugar gritando “produção, produção…” enquanto eu tento alcançá-lo pra desferir nele uns bons safanões. Mas isso nunca acontece. O que me leva a crer que essas passagens definitivamente não são pegadinhas do seu Silvio. São mesmo as peraltices desse menino travesso chamado destino.

Por isso explico que só não contei antes o que escrevo aqui agora porque a coisa parecia um roteiro perfeito, exato de pegadinha. Perfeito até demais, do tipo que ninguém acredita se contar – vocês verão; se acreditarão, são outros quinhentos. Mas aí caí na besteira de contar isso despretensiosamente pra rapaziada aqui do jornal e agora, além de todos rirem da minha cara, o Karlos Kohlbach não deixa um dia de passar na minha mesa cobrando quando vou escrever sobre isso.

Muito bem. Karlitos, segura essa massinha!

Em novembro, fui indicado aqui pelo jornal a visitar uma escola municipal para falar com os alunos da importância da leitura e do papel da imprensa. Peguei o táxi no dia seguinte em direção à Escola Municipal Leonel Brizola, no Tatuquara – um dos bairros mais carentes de Curitiba -, ciente de que a experiência seria bacana. Como realmente foi. Mas mais divertida do que eu imaginava.

Primeiro fui às salas de aula dos mais velhos. Turmas da quarta série, meninada na pré-adolescência, questionando tudo. Eu não dava conta de responder a tantas perguntas, que praticamente quadruplicaram quando eles souberam que eu costumo fazer matérias policiais.
Aí eles me jogaram na cara a realidade em que vivem: ao invés de perguntarem se eu já havia entrevistado gente famosa – como jogador de futebol ou artista de televisão – eles queriam saber se eu já tinha visto gente morta, se já tinha andado em carro de polícia, se já fiquei no meio de tiroteio e por aí vai. Nada mais do que recortes daquilo que eles presenciam em seus cotidianos – muitos daqueles meninos moram na Terra Santa, uma dos bolsões de pobreza mais miseráveis de Curitiba.

Mesmo com o tom das perguntas, não deixei ninguém sem resposta. Menos um menino de olhar triste que me perguntou sério se eu havia feito matéria da morte de um primo dele, assassinado com quatro tiros na rua onde ele (o aluno) morava. Aí travei a resposta e a professora, percebendo meu mau jeito, me ajudou a mudar o rumo daquela prosa, pedindo pra eles me perguntarem quantos jornais eu lia por dia ou algo assim.

Passadas as turmas de quarta série, me levaram para as da primeira série. Imaginei que depois da barra com a molecada mais velha, agora a coisa seria mais fácil. Essa meninada de 6, 7 anos ainda não tem muita noção das coisas, imaginei eu. É só chegar, falar da importância de se ler de uma forma engraçada (lúdica, como diriam as psicopedagogas) pra eles captarem melhor o conteúdo e tudo resolvido.

E dessa vez cheguei precavido. Na capa de uma edição antiga com que a professora estava trabalhando em sala, a foto de uma chacina que havia acontecido um pouco antes. Combinei com ela que o melhor era eu não me enveredar por aquele caminho no bate-papo e peguei logo uma página de Esportes para explicara a eles como é feito o jornal.

Expliquei, respondi as perguntas, fiz umas piadinhas, até que a menina sentada na primeira carteira da primeira fileira da direita, uma de arco rosa no cabelo e que havia perdido os dois dentes de leite da frente há pouco tempo, me fez a pergunta que me derrubaria:

– Por que você não trabalha na televisão?

Pensei antes de responder “Essa vai ser moleza! Agora vou levar essa gurizada ao ápice. Eles vão se matar de rir”. E lasquei:

– Não posso trabalhar na televisão. Sabe como é, sou muito feio – disse a ela rindo e já ajeitando minhas coisas pra ir embora. No que ela atrasou minha partida.

– Você não é feio…

Aí ela ficou uns bons dois segundos me olhando até que completasse a colocação:

– Ele é bo-ni-to! Ele é bo-ni-to! – começou a cantar a menina, como se estivesse em um estádio de futebol e eu fosse o jogador do time dela.

Já estava um pouco sem graça diante de uma reação tão espontânea quando a turma inteira começou a fazer o mesmo. E, não satisfeitos, todos se levantaram e vieram me abraçar.

Eu, que admito não saber lidar muito bem com crianças (tenho sempre a sensação de que elas são de louça e a qualquer coisinha podem quebrar) fiquei imóvel, recebendo aquele abraço coletivo completamente sem jeito, mas com um baita sorrisão no rosto.

Aí eu pergunto pra vocês: uma coisa dessas acontece com todo mundo?!

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