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Muito antes dos comandados do capitão Nascimento se destacarem no filme Tropa de Elite, o Brasil já tinha seu esquadrão policial de sucesso nas telas. Há 30 anos, outro batalhão aparecia correndo atrás de bandidos. E ao invés dos métodos discutíveis do BOPE, a arma desses policiais não eram fuzis, nem pistolas. Com a SUAT – quadro lançado pouco após a estréia dos Trapalhões na Rede Globo, em 23 de março de 1977 -, só um tipo de saco tinha utilidade: o de risadas. Eles eram fanfarrões de farda profissionais. Moleques, sim, com muito orgulho!

Tal e qual os caveiras, os Trapalhões não pediam licença para entrar na casa de ninguém. Todos os domingos, às 19 horas, eles – “um cearense de Sobral, um cigano de Niterói, um carioca da Mangueira e um mineiro de Sete Lagoas”, como o humorista Chico Anysio narra no documentário O Mundo Mágico dos Trapalhões, de 1981 – invadiam as residências com um único propósito: o de arrancar a confissão da gargalhada espontânea. Assim foi a vida dos brasileiros de 1977 a 1995, período em que os Trapalhões chegaram ao auge em sua formação clássica: Didi (Renato Aragão), Dedé (Manfried Sant’ana), Mussum (Antônio Carlos Bernardes Gomes) e Zacarias (Mauro Faccio Gonçalves). Um tempo em que as manhãs de segunda-feira eram muito mais leves.


Didi, Dedé, Mussum e Zacarias: o batalhão de elite do riso nacional.

Comento isso por dois motivos. Semana passada meu irmão ganhou de uma amiga nossa o já citado documentário O Mundo Mágico dos Trapalhões. No meu arquivo dos Trapalhões (que inclui uma peça rara, o cartaz original dos Saltimbancos Trapalhões que meu irmão me deu de presente de aniversário há uns dois anos atrás), eu já tinha o DVD, mas ele veio quebrado e não sei por que cargas d’água eu não pedi à Editora Abril que me enviasse outro. Em todo caso, graças a essa amiga (a família agradece, Iza!) pude ver a obra até o fim. E é simplesmente sensacional, feita pelos próprios Trapalhões no aniversário de 15 anos do grupo – originalmente, o quarteto foi formado em 1966 na TV Excelsior como Os Adoráveis Trapalhões, com Didi, o ator Ivon Cury (de onde vem o chiste “pelas perucas do Ivon Cury!”), o lutador de telecatch ítalo-argetino Ted Boy Marino e o cantor Wanderley Cardoso.

Segundo, porque na mesma semana os jornalistas Luís Joly e Paulo Franco lançaram o livro Os Adoráveis Trapalhões, o qual, apesar da pesquisa rasa (não há entrevista com Renato Aragão, o que enfraquece muitíssimo a obra), vale como referência. Mesmo com essa deficiência, o livro é uma das poucas citações dos Trapalhões na mídia no ano em que a formação clássica do quarteto completou 30 anos. A outra exceção é a entrevista feita pelo meu amigo Jones Rossi com Aragão em março ao site de notícias G1. Na entrevista, Aragão revela que não guarda mágoas de Dedé, com quem teria brigado após a morte de Mussum em 1994. Mas o mais legal são as revelações de bastidores. Como no caso em que Aragão se propôs a pagar uma dentadura a Tião Macalé – o quinto trapalhão, como sempre se referiu Aragão.

E era justamente isso que fazia os Trapalhões populares. Ali não se escondia a realidade. Ninguém tentava ser o que não é. Todos os defeitos e alvos de preconceitos estavam neles. Um nordestino que tentava levar vantagem em pequenas coisas, um gordinho que se iludia de ser garanhão e tentava explorar os colegas em pequenos golpes, um morador de favela alcoólatra e um baixinho careca, meio bobo e medroso. Mas ao mesmo tempo, todos bons de coração e sempre dispostos a ajudar. Tanto é que nos filmes eles nunca eram mocinhos, nunca beijavam as mulheres e nem ficavam ricos – sim, eles eram todos losers. Eram apenas os boas-praças que se dispunham, de forma muito atrapalhada, a ajudar. Difícil um retrato mais fiel do brasileiro médio – seja dos desvios ou das qualidades.

Tal humor sempre foi taxado de politicamente incorreto. Mas se formos olhar a fundo, ocorria o contrário. De certa forma os Trapalhões fizeram uma revolução social na televisão, ao tirar o estereótipo de que somos todos brancos e instruídos, jogando a massa para debaixo do tapete. Até então, o povão pouco ou nenhum espaço tinha na telinha. Ainda hoje é assim. Nordestinos e negros ainda são retratados como serviçais ou bandidos (de bate-pronto, você se lembra de alguma novela com uma família de negros ou nordestinos vivendo normalmente, com filhos indo à escola e pais com casa própria, carro e trabalho de carteira assinada?). “Dizem que somos racistas, mas um dos poucos negros que fazem sucesso no Brasil é o Mussum”, relata Aragão no documentário.

Outro caso em que os Trapalhões mostraram coragem em discutir o preconceito foi na inclusão de Jorge Lafond (que depois ficou mais conhecido pelo personagem Vera Verão da Praça é Nossa, do SBT) no elenco de apoio do programa em 1990. Até então homossexual assumido dificilmente tinha vez na tevê. Homossexual e negro então, nem pensar.

Por essas e por outras que apelidos e gírias como “grande pássaro negro”, “paraíba”, “menina”, “esse camufla”, “poderosa” e tantos outros na boca dos Trapalhões não soavam mal. Eram apenas bons amigos tirando sarro um do outro. “Essas coisas dependem do jeito que você fala. Se você tiver intenção de machucar, aí sim é ofensivo”, explica Aragão na entrevista dos extras do documentário.

Aliás, o que sempre me chamou a atenção nos Trapalhões, especialmente em Didi, foi esse espírito anárquico-bonachão. Muito diferente do pastiche que se transformou hoje, com um programa insosso e cercado de gente bonita, jovem e sem graça, que vive em um mundo de fantasias, o Didi na época dos Trapalhões detonava a própria casa onde trabalhava. Com ele, o tão propalado padrão Globo de qualidade era desmascarado quando, do nada, Didi pegava algum objeto do cenário e dizia “olha só, tudo de isopor, tudo de isopor.” Confesso que nessa hora eu sempre ria mais – inclusive ainda hoje, quando vejo reprises no You Tube. Ali se rompe completamente com as formalidades e dá-se um bico para bem longe no mundo das aparências.

Por isso eles deram tão certo e por isso eram tão próximos do povão de meu Deus. Eles retratavam o cara do botequim, da arquibancada, aquele que madruga para pegar ônibus, que come marmita no serviço, o brasileiro médio realmente. Retratados por quatro caras completamente diferentes – um filho de industrial que largou a advocacia, um artista circense, um sambista do morro que chegou a ser oficial da Aeronáutica e um ex-estudante de Arquitetura que adorava programas de rádio.

Definitivamente, um batalhão de elite do riso que faz muita falta. Principalmente em tempos em que as crianças estão expostas a desenhos japoneses cheios de tiros, socos e pancadaria generalizada. Talvez isso sim seja politicamente correto…

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