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Um estranho na barbearia


Salão de barberia: ambiente ideal para uma conversa masculina.

A escolha da barbearia é um dos principais ritos de passagem na vida de um homem. O salão do barbeiro está para os rapazes como o consultório do ginecologista está para as moças. Ao cruzarmos sozinhos as portas desses dois estabelecimentos tão distintos, não somos mais meninos e meninas. Estamos na transição para os postos de homens e mulheres.

Me lembro bem quando meu pai deixou de me levar para cortar o cabelo. Eu estava por volta dos 12 anos e até então só baixava o volume da cabeça quando ele também resolvia baixar o da cabeça dele, mesmo o velho tendo tão poucos fios no cocoruto. No mesmo dia, sentávamos os três na cadeira do barbeiro: eu, ele e meu irmão.

Até que comecei a ganhar mesada. Foi quando meu pai deixou bem claro que dentro daquela pequena receita que me era repassada todos os meses deveria constar o orçamento do corte do cabelo. Do contrário, bastaria eu gritar Capitão Caveeeerrrrnaaaa para sair do meu ser, voando pelos ares com uma clave na mão.

Meu irmão até não deu muita pelota. Passou anos de cabelo comprido. Eu optei por seguir a recomendação do velho. Nunca tive pinta de leão pra sustentar juba.

Foi então que virei freguês do Zezinho, um dos barbeiros aqui do bairro e onde as opções sempre se resumiram a dois cortes: comprido e curto. Simples como receita de ferver água – e pra que mais?

Nos últimos 18 anos, nenhuma outra tesoura passou pelos fios desta minha cabecinha senão a do Zezinho. Mas confesso que no último sábado caí em tentação.

Por preguiça, deixei a peruca crescer demais. Desesperado pelo ninho de avestruz que se formara na minha cabeça, procurei, como sempre, os serviços do bom e velho Zezinho na terça-feira. Dei com os burros n’água. Fechado. Voltei quinta-feira. Fechado. Sábado. Fechado. Diante da minha aflição, me restou partir para a prevaricação capilar. Procurei a concorrência.

Logo que pus o pé nesse novo estabelecimento senti que o embate não seria dos mais fáceis. Dois senhores que aguardavam a vez pararam de conversar assim que cheguei. Eu não era um rosto conhecido naquele ambiente. E a feição deles era inquisidora: o que esse desconhecido faz na nossa barbearia? Apanhei o jornal e fui ler no canto do território hostil, evitando contatos visuais que me levassem a um interrogatório sujeito a torturas com o secador de cabelos e gel Bozzano.

Chegada a minha vez, me sentei na cadeira. O barbeiro não esboçou reação. Aquele sorriso simpático, estilo “seja bem-vindo”, talvez tivesse caído no chão e sido varrido junto com os restos de cabelos dos outros clientes. “Vamos dar um talento nessa peruca, meu amigo!”, soltei todo sorriso, imaginando ser simpático, no que a feição do cabra não mudou um milímetro.

Diante de uma recepção tão calorosa, optei por ficar quieto. Disse apenas como queria o cabelo e passei eu mesmo a tesoura nas minhas palavras. Após dez minutos de um silêncio sepulcral, veio a primeira frase do barbeiro:

– Não sei você, mas eu não acredito nesse negócio de alienígena…

Olhei em volta esperando uma resposta dos outros fregueses. Nada. Era comigo mesmo.

Que raio de conversa sobre alienígena era aquela? Papo de barbearia é futebol, política, mulher, carro, o freguês que morreu, o freguês que mudou de bairro, o buraco da rua que a prefeitura nunca fecha… Essas coisas. Não divagar sobre a possibilidade de não estarmos sozinhos no universo.

Disfarcei com um “pois é, nunca provaram a existência deles…” e decidi entrar de vez com ele no clima ficção científica: fingi estar no espaço, onde o som não se propaga. Apertei a tecla Mute até o serviço ser concluído.

O cabelo até que ficou bom, mas saí do salão com a sensação de arrependimento por ter deixado de ir ao Zezinho. Pois lá é diferente. Eu chego, ele me cumprimenta. Diz que faz tempo que não apareço – tanto tempo que o cabelo ficou deste tamanho…

Pergunta como está meu trabalho. Comenta que viu dia desses uma matéria minha no jornal, mas que não se lembra sobre o que era. Me contaria que nasceu o filho de não sei quem e que o neto de outro freguês foi aprovado na peneira de algum time. Assim como ele contou pra todo mundo quando eu passei no vestibular, quando me formei, quando comecei a trabalhar…

Eu bateria um papo agradável com os outros caras que estariam esperando a vez. Algum atleticano – sempre há um pra me atazanar a vida – faria troça da situação desesperadora do meu Coxa, no que eu rebateria que o time dele também não nada em nenhum mar de rosas.

Alguns chegariam a se queixar dos infortúnios da vida. E eu, mesmo sem a intimidade que só a amizade mais profunda confere, talvez dissesse alguma palavra de consolo. Outro já diria que eu tenho que fazer matéria de um determinado assunto que lhe aflige: uma multa de trânsito mal-aplicada, a falta de médico no posto de saúde ou a eternidade que leva para a viatura da polícia atender a uma ocorrência.

Assim caminharia o bate-papo na barbearia do Zezinho até ele bater o jaleco cheio de pelo antes de eu pagá-lo. Porque ali sou conhecido por todos. Não tem como eu me sentir um alienígena.

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