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Qual é a melhor forma de aproximarmos os cidadãos dos partidos e dos legisladores?

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Por Humberto DantasAna Marina de Castro

Parece consensual na sociedade brasileira que atravessamos uma aguda crise de representação em nossa política. Indicadores não faltam para nos aprofundarmos nesse diagnóstico. Desde o começo do século, é crescente o fenômeno de alienação atrelado às abstenções e votos inválidos. Os indicadores de confiança em parlamentos e partidos demonstram que os mais significativos organismos da democracia representativa não parecem mais dialogar com os anseios de boas parcelas dos cidadãos.

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Para muitos, o caminho capaz de nos retirar desse abismo atende pelo nome de “reforma política” – entendida por diversos agentes como puramente uma reforma no sistema eleitoral. O grande problema é que, desde a redemocratização, para pontuar minimamente o fenômeno no tempo, nunca um pleito no Brasil foi disputado sob a mesma regra do anterior. Alterações mais ou menos profundas ocorreram, uma parte por meio de novas leis, outra por meio de um Judiciário que interpreta ao seu modo uma série de regras que pareciam inquestionáveis até a leitura criativa de algum ministro que faz uso do poder conferido à seara da justiça eleitoral por uma lei de 1965 – não precisamos lembrar o que tínhamos nesse ano em matéria de governo e interesses neste país.

Tá, mas e o Congresso?

Mas, para além dessas alterações, é importante destacar que a despeito do processo eleitoral, há uma série de garantias que aprimoram a democracia e devem ser levadas em conta. O voto não pode ser considerado a única forma de se medir a efetividade de um processo democrático. Robert Dahl (2005) bem coloca que a democracia é um sistema onde o governo é totalmente ou quase totalmente responsivo aos seus cidadãos – e esta responsividade pode acontecer de diferentes formas, através da formulação, expressão e consideração das preferências dos cidadãos. O sistema eleitoral não consegue dar conta de todo este processo. Há uma série de garantias mínimas que um bom regime democrático deve ter. Entre elas está o direito ao voto, onde a maior parte dos debates sobre a “reforma política” se localiza. Mas devemos considerar também a liberdade dos cidadãos para se associarem, a obtenção de informação por diferentes fontes e a liberdade de expressão. É necessário considerar a democracia como um processo mais complexo e completo do que o exercício das escolhas diante das urnas e, adicionalmente, as mudanças nas regras do sistema eleitoral.

Assim, consideremos que há uma série de estratégias usadas pela sociedade para influenciar o processo político. Entre estes mecanismos, podemos citar pressões populares através de campanhas de mobilização nacionais; a abordagem direta ao parlamentar para apoio a projetos de interesse de parcelas da sociedade; o envio de e-mail aos legisladores como ferramenta de influência; a realização de manifestações públicas; e o uso de recursos jurídicos para incidir no debate público, através da figura do Amicus Curiae. A participação política é um terreno fértil, e é importante que seja para o bem da democracia. Não podemos colocar todas as nossas expectativas na mudança do sistema eleitoral, apesar de saber da importância do debate sobre as regras do jogo e o aumento da clareza para a eleição dos nossos representantes.

Adicionam-se a toda essa discussão sobre a “reforma política” algumas das mudanças que findaram sendo sentidas como tal e não foram interpretadas dessa forma à época de suas aprovações. A adoção do voto eletrônico, a Lei de Responsabilidade Fiscal e mudanças na lógica administrativa do Estado são reformas com fortes impactos no universo político sem necessariamente terem sido criadas e vendidas como “reformas políticas”. Repensar o sistema tributário, investir sobre o pacto federativo, observar a forma de o Estado brasileiro contratar, privatizar algumas empresas públicas, educar politicamente nas escolas e tantos outros pontos merecem atenção aqui, para além do que achamos de cada um desses aspectos.

Assim, a despeito de tais aspectos, o país segue buscando entender o que seria ideal em matéria de uma “reforma política”. Nesse caso, o principal desafio não é dizer o que fazer ou o que adotar como sistema eleitoral, se é que esse é o principal ponto, mas sim compreender quais os problemas que estamos enfrentando para, a partir disso, encontrarmos a solução. Note: “reforma política” e qualquer mudança institucional sugerida nesse sentido não pode ser resposta para a pergunta: “qual o problema?”, pois as alternativas destacadas ou eventualmente adotadas já soam como solução. Desse modo: “qual é o problema?”

Vamos partir da ideia absolutamente improvável de ser comprada como verdade por grandes parcelas do senso comum que nosso maior problema em matéria de representação política está na fraqueza e no distanciamento em relação aos cidadãos dos partidos e dos políticos – sobretudo dos parlamentares. Note: temos aqui dois objetos atrelados à problemática, os partidos e os legisladores. Existiria uma forma clara de aproximarmos os cidadãos desses dois universos? Sem ouvir muitas reclamações e ver muito nariz torcido, certamente, não. Mas remédio amargo por vezes é o que cura. E, portanto: vamos encarar o desafio.

Existe um modelo para a eleição de parlamentares que hoje são escolhidos pelo sistema proporcional de lista aberta que poderia contribuir com essa demanda. O atual sistema não é ruim, longe disso, mas é mal interpretado por uma sociedade personalista e extremamente mal compreendido e utilizado pelos agentes partidários. O fim das coligações em pleitos desse tipo a partir de 2020 em tese contribuirá para reduzir a distorção maior do atual modelo, apesar de levar consigo parte da chance de sobrevivência de partidos menores, e isso é o preço que pagamos por qualquer alteração. Nesse caso, destaca-se: nada que é feito sobre a realidade carrega apenas aspectos positivos ou negativos. Onde se ganha, há sempre algum tipo de perda, e o saldo é que deve determinar o avanço.

No caso do que se defende aqui, o saldo tende a ser positivo aos olhos de quem avalia a política para além dos ódios às suas instituições formais de representação. Se os partidos precisam ser fortalecidos para que possamos entender melhor suas respectivas influências e forças, então a lista aberta das eleições proporcionais precisa ser fechada. Com isso, em tese, as campanhas nominais em longos territórios se tornariam organizacionais (partidárias) e mais baratas. O partido passa a pedir voto no lugar de um oceano de candidatos. O problema é: quem define a ordem da lista? Ela teria alguma garantia de alternância de gênero? Será imposta alguma lógica de democracia interna no interior das legendas? Ou a sociedade ficará incumbida de cobrar essa postura? Por fim: os partidos serão ainda mais negociados para garantirem aos caciques políticos que pouco têm apego a alguma legenda melhores posições em listas compradas por lideranças locais? A conferir, e isso tudo apenas adensa um universo já conhecido do brasileiro. Mas se pensarmos que as legendas levantam bilhões de reais públicos entre Fundo Partidário, Fundo Eleitoral e Horário Eleitoral Gratuito, e são distantes e pouco transparentes, o ideal não seria aproximá-las e obrigar o eleitor a dar um voto no partido? As campanhas aqui, em tese, seriam despersonificadas e apenas mensagens com propostas e pontos ideológicos seriam trazidas? Se essa for a realidade, vale a pena insistir na tese.

Mas como fazer para aproximar o político do cidadão? A lista fechada fortalece o partido, e por meio dele isso dificilmente ocorrerá. Nesse sentido, valeria a pena deixar metade das vagas definidas hoje por lista aberta e no parágrafo anterior por lista fechada a cargo de distritos uninominais onde o representante seria escolhido de maneira majoritária? Não somos defensores desse modelo em seu formato puro, mas reconhecemos que na forma mista, como em linhas gerais ele se desenvolve na Alemanha, pode ser algo bastante interessante. O desafio aqui é manter o mesmo número de representantes por estado, e dividir territórios em distritos menores. Imagine, por exemplo, que a imensidão do Amazonas seria repartida em quatro pedações – pois no modelo misto os outros quatro parlamentares, dos oito que essa unidade já tem direito, seria eleita por voto em lista fechada. No estado de São Paulo a fragmentação seria feita em 35 distritos e torna-se mais fácil justificar a medida. Assim, nesse gesto de defesa todo cuidado é pouco para que consideremos as realidades heterogêneas.

Outra dificuldade está associada ao fato de que o eleitor terá que votar duas vezes para deputado federal – na lista e no candidato de seu distrito. Por fim, com eleições onde escolhemos as representações nacionais e estaduais ao mesmo tempo, não será tarefa fácil dividir o estado em números diferentes de distritos. Por exemplo: São Paulo tem 70 deputados federais e 94 estaduais; sob a metade distrital teria 35 territórios federais e 47 partes estaduais?  Uma solução possível seria usar a mesma quantidade de distritos para deputados federais e estaduais. O número de parlamentares estaduais sobressalentes disputaria as cadeiras através dos votos na lista – o que poderia fazer sentido em São Paulo, mas em estados com oito deputados federais e 24 estaduais poderia representar uma grande distorção.  Esta solução foi proposta pelo deputado Vicente Cândido, relator de um dos projetos de Reforma em 2017. As fórmulas aqui não parecem simples, e passam ainda pelo complexo desafio de definir as fronteiras interestaduais desses distritos e definir de forma mais clara e menos casualista questões como a infidelidade partidária, pois “abrir janelas” para eleitos em listas fechadas é algo que perde totalmente o sentido. Ainda assim devemos voltar à questão das perdas e ganhos.

O saldo aqui é positivo? Parece que sim, pois fortalecer num mesmo sistema os partidos e os políticos nominalmente, divididos nesse caso sob bandeiras mais territoriais, pode ser algo relevante para que notemos de forma mais clara como combater a crise que enfrentamos. Ideias desse tipo são discutidas desde os anos 90 no Brasil, e nesse instante um projeto tramita no Congresso Nacional. Facilidade para sua aprovação não existe, pois em 2015 os deputados federais enterraram todas as possibilidades de alteração do modelo proporcional de lista aberta em uma mesma noite. Ou seja: não existe consenso nem formação de maioria, sobretudo quando se vota pensando na solução sem formular o problema. Não custa acreditar, e não custa observar com calma o que está proposto. O projeto de voto distrital misto tramita agora na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, após aprovação no Senado em dezembro de 2017.

Lembremos aqui: em outrora o Senado já aprovou temas de alteração no sistema proporcional, mas a tentativa naufragou, pois é a Câmara quem utiliza esse modelo, e para os senadores mudanças desse tipo são mais fáceis de serem enfrentadas. E mais: ainda no governo de Dilma Rousseff e sob o forte impacto de velhos políticos do PMDB, aprovou-se a lista fechada com alternância absoluta de gênero em sua composição. Quando o projeto caiu nas mãos de uma Câmara, composta por 90% de homens, nada mais caminhou. De fato, não é uma tarefa fácil chegar a um consenso sobre este tipo de mudança: conclusões de estudos comparados mostram que os desafios de se mudar o sistema eleitoral são grandes em todas as partes do mundo – visto que os parlamentares precisam votar regras que afetam diretamente suas estratégias de campanha.

Por fim: a nova proposta de voto distrital misto que avança no Senado e existe sob a forma de lei ordinária poderá ter a sua constitucionalidade questionada por quem duvida dos bons ventos dessa mudança. Nada é fácil nesse trajeto, e há que se ter cuidado em comemorar aprovações sobre essa temática no Senado. Por outro lado, é bom lembrar que no ano passado a Câmara aprovou mudanças incrementais importantes no sistema eleitoral, como o já citado fim das coligações e a cláusula de barreira, em uma negociação complexa, mas bem sucedida. Vinte anos atrás, mudanças como estas eram impensáveis no sistema eleitoral e foram paralisadas pela Câmara – e hoje este cenário se tornou realidade. Nada é fácil, mas também é bom olhar para a história e entender que estamos trilhando um caminho que pode trazer melhorias incrementais ao sistema eleitoral. Uma boa alternativa está assim colocada: o voto distrital misto. A causa é nobre, mas a jornada é longa.

Humberto Dantas – cientista político, pós-doutorando pela FGV-SP e coordenador da pós-graduação do Centro de Liderança Pública (CLP)

Ana Marina de Castro – cientista do Estado, mestranda pela FGV-SP e gerente de mobilização do Centro de Liderança Pública (CLP)