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Reinaldo Bessa

Reinaldo Bessa

Perfis da sociedade curitibana pelo olhar de Reinaldo Bessa.

Opinião

A cativante senhora de cabelo vermelho

Ety relembra suas histórias.
Uma vida dedicada ao Hospital Pequeno Príncipe. (Foto: Camila Mendes )

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A cor do seu cabelo dá uma pista do que tem dentro da mente dessa senhora inquieta. Com intensos e bem vividos 83 anos, Ety da Conceição Gonçalves Forte é uma figura cativante logo na primeira frase da conversa intercalada por vários cigarros e histórias que parecem sair de um baú abarrotado de memórias bem guardadas. O adjetivo cativante não entrou à toa aqui. A famosa frase do personagem de Saint Exupéry, “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”, é seu mantra e a inspirou a batizar aquele que viria a ser o maior complexo hospitalar pediátrico do país e referência no tratamento de doenças infantis, o Hospital Pequeno Príncipe. Ao me receber em seu apartamento de cobertura no Ahú e saber do meu interesse em ouvir suas histórias, dispara: “Eu sou a mais comum dos mortais”.

Antes de me acomodar, circulo pela ampla sala decorada com muitas obras de arte – algumas de sua autoria – e contemplo, da janela, o antigo presídio do bairro. “Eu vi o Beira-Mar pendurar um preso na janela da cela dele”, diz com voz suave e cigarro em punho enquanto observa meu ligeiro tour, relembrando o período que o famoso traficante carioca passou na cidade. Já acomodado na cadeira, noto ao lado um enorme cesto cheio de velhas bonecas de porcelana. Ety se empolga ao falar delas. Escolhe uma aleatoriamente, um boneco negro, e o coloca no colo. “Chega de matar nossos irmãos negros. A humanidade está doente, ninguém se respeita”, fala disfarçando um choro contido. Refeita, começa a desfiar suas memórias. Antes, ao perceber meu interesse pelas diversas esculturas em cerâmica nas prateleiras, levanta-se e vai em busca de uma para me mostrar. “Mas é pornográfica, pode?”, pergunta. O autor é um doente mental. Ety é ceramista formada em Buenos Aires, mas desde os 13 anos já frequentava a Escola de Belas Artes de São Paulo. Contou que enquanto me aguardava, pintava golfinhos. Durante toda a conversa, falou várias vezes: “Isso não é para escrever”. Numa delas só continuou a falar quando viu a caneta depositada na mesa de centro e o caderno de anotações fechado. E contou passagens mais engraçadas do que impublicáveis.

Casada há 62 anos com o renomado arquiteto e urbanista Luiz Forte Netto, Ety se descreve como uma pessoa rebelde que tenta melhorar. A rebeldia, segundo ela, é uma arma para lidar com situações que não domina. A cor do cabelo é uma dessas armas. “Um dia resolvi que seria vermelho. Ninguém entendia”, conta, rindo. Também é alternativa para roupas, mesmo na atual fase da vida. Gaba-se de ter inaugurado o vestido saco, feito por ela mesma, ainda jovem. Diz que o marido adora seu estilo e reclama quando ela veste algo convencional. “Ele é um excelente companheiro, mas isso não quer dizer que somos o casal do cachorrinho freeway”, frisa enquanto esmaga mais um resto de cigarro no cinzeiro e antes de acender o próximo.

Nascida na capital paulista, assim como o marido, Ety foi criada por uma das avós porque os pais eram desquitados, situação que lhe valeu muito bullying na escola. “Tudo que fiz na vida foi para deixar de ser discriminada. Tinha que ser melhor que minhas amigas, cuja mães não deixavam brincar comigo porque era filha de desquitados”, conta. Tinha adoração pelo pai, alcoólatra, uma pessoa generosíssima, segundo ela. Conheceu Luiz com apenas 12 anos e se apaixonou perdidamente pelo adolescente bonitão três anos mais velho. Casou-se com 19 para 20 anos. O cabelo ainda era castanho. Recém-formado, ele recebeu um convite para se mudar para o Paraná e poderia escolher entre Curitiba, Londrina e Maringá. Antes de responder se aceitava, comentou a possibilidade com a mulher. Ao chegar em casa no fim do dia, encontrou tudo encaixotado. Diante do espanto do marido com a situação, ela respondeu: “A gente não vai embora?”. A precipitação custou um mês morando na casa da sogra.

O casal chegou a Curitiba em 1960, em um caminhão de milho, trazendo junto um piano. Já tinham a primogênita Ety Cristina, atual diretora executiva do Complexo Pequeno Príncipe. Aqui nasceram suas outras duas filhas, Tatiana e Patrícia. “Cheguei quebrando todos os padrões. Usava calça comprida, fumava. Ia da feira hippie à alta sociedade”, relembra. Para ajudar nas despesas da casa, criava, às escondidas do marido, objetos inusitados, como uma vassoura com saia e velas, e os vendia. E assim foi se enturmando na cidade e na sociedade curitibana. Junto com uma amiga, Ety ajudava hospitais e o leprosário arrecadando roupas para os doentes e crianças especiais. Um belo dia, em 1966, recebeu em casa a visita do renomado pediatra curitibano Plínio de Mattos Pessoa, médico de suas três filhas. A certa altura da conversa, enquanto Luiz tomava um uísque, Pessoa disse para ela: “Segunda-feira a senhora assume a presidência da Associação Hospitalar de Proteção à Infância Dr. Raul Carneiro”, entidade mantenedora do Hospital Cesar Perneta, antecessor do Pequeno Príncipe. Após uma breve relutância, ela aceitou o desafio. Ety diz que o amigo justificou o convite da seguinte maneira: “Chamamos a senhora porque precisamos que faça o social e organize encontros”. Ao contar essa passagem, engole o choro. Chamou o pediatra Ivan Fontoura – irmão do ator Ary Fontoura – para acompanhá-la na visita ao acanhado hospital infantil. Diz que cheirava a urina. Caiu no choro e disse: “Vocês escolheram a pessoa errada. Não gosto de bingo, de festa nem de sociedade”. Diante da insistência de todos que a acompanhavam, fez uma contraproposta, que foi aceita. Pediu carta branca para assumir a presidência da mantenedora e sugeriu a criação de um estatuto próprio. Com a cara e a coragem, foi ao Banco de Boston pedir uma doação para o hospital. O gerente lhe deu uma nota equivalente a cinco reais. Ela a picou na frente dele e saiu batendo a porta. Dias depois o presidente do banco a procurou. Ety pensou que ia levar uma bronca pela reação destemperada. O banqueiro não só a parabenizou como lhe ofereceu uma bela ajuda financeira, o que a animou a seguir em frente.

Um dia, ao visitar a ala de queimados do hospital, notou que os colchões eram só vermes. Chamou um funcionário e ordenou que tocasse fogo em todos eles no pátio. “Depois me arrumei lindíssima e fui falar com o secretário da Saúde, Dalton Paranaguá, para pedir colchões novos e travesseiros”. O secretário teria negado ajuda alegando não ter verba. Ao relembrar a história, chora novamente. Saiu da sala do homem batendo outra vez a porta. Ligou para reclamar com o deputado Aníbal Khury, amigo da família e na época já poderoso, que passou uma reprimenda no secretário e mandou que ele atendesse a todos os pedidos dela dali por diante. Com o dinheiro, comprou lençóis e flanelas “na Pernambucanas” e, com a ajuda de voluntárias, passou a confeccionar pijamas para os pequenos pacientes. Também inclui entre seus anjos da guarda o advogado Fernando Miranda, que sempre a atendeu em tudo. Passou a bater palmas nas casas vizinhas do hospital para pedir comida para as crianças e chegou a mandar uma carta para o presidente dos Estados Unidos, John Kennedy. Semanas depois o hospital recebeu uma carga de duas toneladas de lentilha.

“Eu não era uma mulher corajosa. Eu era audaciosa, uma tartaruga me fingindo de tigre de bengala”, diz.

Outra estratégia para ajudar o hospital, sempre endividado, era pedir aos donos de cartórios que colocassem os títulos protestados por último na pilha, no que sempre era atendida. E assim, rosnando como um tigre com os que encontrava pelo caminho, foi reequipando o velho hospital até que seu marido, que sempre atuou ao seu lado como voluntário da associação presidida por ela em paralelo às suas atividades como urbanista e professor universitário, projetou o que é hoje o Pequeno Príncipe, primeiro hospital construído especialmente para crianças. Como tinha na cabeça que os pequenos pacientes mereciam ser tratados como príncipes e princesas, propôs a mudança do nome. Diz que foi muito malhada quando escolheu o novo nome. “Me encheram o saco”, resume. O novo hospital foi construído sobre um antigo depósito de lixo na Avenida Silva Jardim. Alguns cigarros (dela) e cafés (nossos) depois, me despeço ainda a tempo de ouvir que ela e o marido foram visitar o hospital recentemente, depois de um bom tempo sem aparecer por lá por causa da pandemia. “Se você chegar às 4, desde às 3 estarei te esperando”, conclui a cativante senhora de cabelo vermelho enquanto me acompanha até a porta. Definitivamente, Ety da Conceição não é deste planeta.

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