A atual situação migratória na Europa, principalmente no que diz respeito aos problemas enfrentados pela Itália levanta novamente o problema da forma como seres humanos vem sendo tratados como mercadorias. O discurso, com o qual faço coro, é o de que embora seja uma realidade cruel, deve ser enfrentada a partir da premissa de assistência humanitária. Entretanto, a abordagem a ser adotada é mais complexa que um discurso rasteiro de direitos humanos, vez que envolve interesses políticos e preocupações das pessoas que vivem nos países destino que certamente também sofrem com a onda migratória, o que também reacende sentimentos nacionalistas impulsionados pelo medo e desconfiança, e também, pelo oportunismo de políticos que encontram eco na sociedade já calejada pelo medo e crises econômicas sucessivas.
Entretanto, independente da complexidade, uma questão subjaz, a necessidade de percebermos que entre os problemas enfrentados na origem no norte da África e o destino europeu estão seres humanos.
As declarações do premiê britânico David Cameron, que se compadeceu com a situação de penúria que dá origem à fuga de seres humanos de suas origens e com todos aqueles que arriscam suas vidas na busca por uma vida melhor, mas ao mesmo tempo foi bastante pragmático ao oferecer ajuda de navios e helicópteros para patrulhar as fronteiras da Europa, principalmente por mar subordinadas a condições prévias.
A oferta britânica envolve a necessidade de garantias dos líderes da União Europeia de que aqueles imigrantes em situação de risco e que tenham sido resgatados com auxílio britânico não tenham como destino território do Reino Unido. Imagino que a Itália também não tenha interesse em receber estas pessoas, mas o tem feito há muito tempo, mesmo com a pressão política da população italiana que a cada dia que passa tem se mostrado mais preocupada com a entrada diária de imigrantes em seu território.
É obvio que a estabilidade em países como Líbia, Tunisia, Senegal e Sudão seria essencial como medida para evitar a fuga em massa de seres humanos de seus países, entretanto é uma medida a longo prazo. Nesse sentido, deve-se ter consciência de que se trata de situação de urgência extrema e que depende da cooperação internacional imediata.
Quaisquer medidas a serem adotadas não podem perder de vista que seres humanos não são coisas, pois nesse momento os traficantes de pessoas tratam estes desafortunados como mercadoria, transportando gente como sacos de arroz, em porões quentes e úmidos, embora até mesmo sacos de arroz devam ser transportados em condições mínimas para não estragarem.
Esta “coisificação” faz parte de um processo de transformação do ser humano em mercadoria, em objeto, uma conduta que nos faz voltar ao século XIX, onde os traficantes de pessoas, legalmente, viam em seres humanos uma oportunidade para o lucro, entendendo que algumas pessoas não se encontram nas mesmas condições que outras, e que existem somente para serem instrumentos para o lucro, embora àquela época tudo isso estivesse coberto pelo manto da legalidade, algo que é inaceitável em pleno século XXI.
Por exemplo, no jornal Correio Paulistano de 24 de abril de 1878, foram publicados anúncios que apresentavam o seguinte:
Nesses anúncios é possível perceber que a transformação de pessoas em objeto era algo normal, e que o processo de coisificação do escravo era tão natural ao ponto de ser exposto publicamente pelos meios de comunicação no século XIX.
Atualmente este processo não mais possui status de normalidade, mas infelizmente ainda é muito comum, embora combatido. Um novo comércio de escravos é o que vem ocorrendo entre África e Europa, com a diferença que estes escravos são entregues à própria sorte ao serem “descarregados” no porto de destino, porto este que tenta invariavelmente impedir a sua chegada, e que enxerga estes imigrantes como um problema e não como um produto, tal qual no século XIX, embora os imigrantes continuem sendo pessoas à margem da sociedade e percebidas como de segunda classe.
Este comércio que envolve pessoas como mercadorias ultrapassa fronteiras, não respeitando nacionalidade, raça, sexo ou idade, fazendo com que o ser humano continue ser transformado diariamente em objeto, tratado como meio para o lucro, para a exploração.
Tal qual nos anúncios de jornal do século XIX no Brasil, o tráfico de pessoas é tido como um processo de transformação de seres humanos em objetos sem se importar com a realização daquele que é traficado, com a sua felicidade, pois esta não existe, estes são objetos de exploração, de um processo de coisificação cruel e desumano.
É importante ressaltar que em grande medida não se trata de comercialização de seres humanos, vez que estes não são destinados a um fim de uso ou de escravidão, mas sim de exploração da desesperança e da miséria como meio para o lucro, ou seja, a exploração de desesperados que buscam a própria felicidade, e que para alcançar a mera possibilidade de busca-la enfrentam condições cruéis e ilegais. Aqueles que transportam estas pessoas tratam estas como simples objetos não como seres humanos que buscam a sua felicidade como eu e você meu caro leitor, sendo que o negócio na perspectiva do traficante de pessoas é a exploração do sofrimento, marginalizando a realidade de que o seu “cliente” é uma pessoa, e não uma mercadoria.
David Cameron foi cuidadoso mas direto em suas palavras, pois, tal qual todos os líderes europeus, está preocupado com os impactos aos cidadãos do seu país com uma corrente de imigrantes fugidos da miséria, mas que chegam também sem perspectiva e colocação na sociedade, destinados à permanecerem à margem do Estado, mas acerta ao perceber que o real inimigo é o traficante e a miséria. Como combater a miséria na África é algo secular, complexo e de longo prazo, talvez o foco do combate seja realmente o tráfico e a ilegalidade da migração.
Quero crer que os países que tem sofrido com esta crise estejam tratando os imigrantes de forma diferente dos traficantes de pessoas, ou seja, entendendo que estes são seres humanos e não coisas, embora a decisão não seja fácil devido aos impactos aos países destino. A única solução possível passa pela cooperação internacional, esforço este que certamente começará a surtir efeitos positivos muito em breve, pois as crises na África afetam diretamente o mundo inteiro na nossa amada “aldeia global”, e a resposta não deve ser somente da Itália ou Reino Unido, mas da Europa, do mundo, pois uma questão de humanidade que deve transcender, sem marginalizar, questões políticas e econômicas.
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