Já passou da hora de reconhecer o óbvio: as mensagens de aplicativas reveladas pelo The Intercept Brasil são verdadeiras. Mas o que isso realmente significa?
1) As reações da direita quanto à autenticidade do material têm sido, em geral, vergonhosas (calma que vamos falar da esquerda também). Está claro que um material do tamanho do que está sendo revelado não poderia ter sido fabricado. Há repórteres experientes de outros veículos, além do Intercept, que já tiveram acesso ao material.
A reação dos envolvidos também deixa patente que as conversas existiram. Isso, porém, não tem nada a ver com as discussões, bastante válidas, sobre o (2) "contexto" das conversas; (3) a interpretação do que está ocorrendo ali; (4) o enfoque que o Intercept tem dado ao material; (5) o valor jurídico das conversas; e (6) a forma como a fonte teve acesso ao material (falamos sobre isso mais abaixo).
1.1) Sobre a última reportagem, em que o material teria sido "editado": está óbvio, desde o início, que o texto das mensagens que aparece nas reportagens não é o texto original. Ele foi transcrito para as páginas. O Intercept não teve acesso a "prints" do Telegram, mas a download das mensagens em forma de texto (você pode fazer isso no próprio WhatsApp ou Telegram) e de arquivos que, pelo que se sabe, envolvem vídeos, áudios e fotos.
1.2) Especificamente sobre o erro quanto ao nome do procurador "Angelo" – que apareceu em uma prévia do Glenn Greenwald, não na reportagem: também não está claro que os remetentes das mensagens não vêm identificados com nome, RG e CPF. Membros do MPF já me disseram que há (ou havia) grupos com centenas de procuradores no Telegram. O número do Deltan é fácil de identificar -- porque todo mundo o tinha --, mas isso não vale para todos. Parte do processo de checagem envolve identificar quem é quem (em uma próxima postagem, vamos destrinchar especificamente o caso da procuradora Monique Cheker).
2) O problema do “contexto”: a reação dos envolvidos nas mensagens, até agora, mostra que elas existiram. A estratégia tem sido (i) não reconhecer a "legitimidade" das mensagens (o que não tem nada a ver com os fatos), (ii) repisar que são muitas mensagens há muitos anos, (iii) que não se pode lembrar de tudo e, portanto, (iv) que poderia ter havido adulterações -- e mesmo essa estratégia foi sendo construída com mais clareza ao longo do processo.
2.1) Está razoavelmente claro que, se algo tivesse sido inventado, teria sido uma bala de prata. Ninguém montaria uma situação dessas pra deixar tudo aberto à valoração. Fico imaginando alguém montando um esquema desse tamanho para a crítica mais pesada que o ex-juiz Sergio Moro teria a fazer ao MBL é dizer que há "alguns tontos" no movimento.
2.2) A estratégia de negar o conteúdo tem mais valor jurídico que político ou para o senso comum: ela serve para não esquentar as provas ou configurar confissão.
2.3) Quem ainda se move pelo senso comum, e não está embotado pela ideologia, está raciocinando como se o conteúdo fosse verdadeiro – porque é o mais razoável e plausível mesmo.
2.4) A maior parte do que está ali não precisa de mais contexto do que já tem. É perfeitamente possível entender quem fala, o que fala, sobre o que fala, quando fala, etc. O problema real é interpretar e avaliar o que está ocorrendo (veja o ponto 3 abaixo).
2.5) A direita está insistindo na estratégia do avestruz (os inocentes) e da cortina de fumaça (os cínicos). No médio e no longo prazo, essa estratégia vai se provar contraproducente.
2.6) Por outro lado, a esquerda – e a cobertura do Intercept está sofrendo desse mal – está investindo no moralismo e exagerando o conteúdo em muitos aspectos, o que nos leva ao próximo ponto.
3) A interpretação do que está ocorrendo ali: muitas conversas estão abertas a discordâncias de boa fé sobre sua regularidade.
3.1) As mais óbvias são as que ocorrem entre os procuradores: quem se escandaliza com colegas de trabalho discutindo estratégias de acusação, fazendo piadas ou sendo levianos ao falar, ou (i) não conhece a realidade, ou (ii) finge escândalo para aumentar a repercussão. Essas mensagens podem dar indicativos de uma coisa ou outra, podem até ter interesse público, o que está aberto à discussão, mas são fracas.
3.2) As conversas entre Moro e os procuradores são mais delicadas, pela questão da imparcialidade. Por um lado, me espanta a posição de senadores como Randolfe Rodrigues (Rede-AP): como alguém poderia ser tão entusiasta da Lava Jato, uma operação tão complexa, tão imensa e que já dura cinco anos, e imaginar que não havia conversas entre Ministério Público e juiz? Não imaginar que havia uma coordenação política, mas não político-partidária, dos agentes públicos?
3.3) Por outro lado, há pontos específicos da conduta de Moro que são mais delicados: (i) a indicação de uma fonte, ou "notícia crime" via aplicativo; (ii) o “aconselhamento” da acusação, como no caso da procuradora Laura Tessler, (iii) e a sugestão ao MP da edição de uma nota respondendo ao “showzinho” da defesa do ex-presidente Lula.
3.4) São essas questões que mais dividem as pessoas de boa fé. São essas questões que levantam um problema de algo que talvez seja mesmo comum no sistema judicial, mas que não deveria ser normal (no sentido de segundo a norma): a proximidade entre juízes, acusação e defesa. No caso da Lava Jato, foi com a acusação. Em outros, é com a defesa (Oi, Gilmar). O problema é normativo e cultural, e não tem solução fácil.
4) O Intercept tem direito a publicar o material de acordo com sua linha editorial e, pessoalmente, a verdade me interessa mais que os resultados da Lava Jato ou a reputação deste ou daquele. Como pessoa e jornalista, a verdade é a única coisa que me interessa – com todas as dificuldades que ela envolve, sabemos.
4.1) Isso não faz, contudo, o Intercept estar isento a críticas. É possível que haja críticas de má-fé, na linha da cortina de fumaça, mas faz parte do espaço público democrático criticar e ser criticado. É do jogo.
4.2) Sobre isso, portanto: (i) ainda falta transparência quanto aos materiais, principalmente em contexto de crise do jornalismo, e (ii) o excesso de viés na apresentação do material, bem como (iii) o “estilo folhetinesco” (cf. Carlos Andreazza) estão atrapalhando: isso faz com que os editores às vezes prometam bombas que, para pessoas razoáveis no centro do espectro político, não passam de “traques” – o que é outra forma de dizer que a publicação, e grande parte da esquerda, não parece estar muito atenta às nuances e sutilezas das conversas que estão sendo divulgadas (veja o ponto 3). E, claro, há quem esteja de má-fé na esquerda também.
5) Tudo que se disse até agora importa para o senso comum e para a política, mas quase nada para o Judiciário. A questão de como essas conversas poderão ser aproveitadas, eventualmente, em processos judiciais e quais consequências poderão surgir daí é por demais complexa para especular muito. Ainda é preciso esperar os desdobramentos. Há pessoas de boa-fé, de um lado e de outro, defendendo soluções opostas. Isso também vai depender de como toda a história assentar na opinião pública.
6) A discussão sobre a fonte do material não é irrelevante, muito pelo contrário. Não (ii) para desacreditar o material, porque o material é o material independente da fonte, e o que vai ser feito dele depende de nós, nem (ii) para intimidar o Intercept, o que é uma vergonha. Mas porque a fonte, em si, é uma história – como todas as grandes histórias de vazamento nos Estados Unidos mostram. A fonte do vazamento poderia ser um hacker russo tentando desestabilizar o Brasil? Poderia, e essa história mereceria ser contada, se for verdade. Mas uma coisa não anula a outra. São duas (ou mais) histórias.
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