As vidas de blogueiro de opinião e repórter às vezes se misturam. Ontem (8) passei o dia trabalhando em uma reportagem sobre impedimento e suspeição, por causa do ofício que a Lava Jato fez à Procuradoria-Geral da República (PGR) pedindo que argumente que Gilmar Mendes é suspeito para julgar os casos do Paulo Preto no Supremo Tribunal Federal (STF). A Força Tarefa descobriu conversas no mínimo impróprias no celular do ex-senador e ex-chanceler Aloysio Nunes, velho amigo de Paulo Preto, operador do PSDB. Nunes estaria tentando interceder perante Mendes para aliviar a barra do amigo.
Quando a reportagem for para o ar, o leitor vai entender um pouco melhor a obscuridade do tema, que quase nunca despertou muito interesse dos estudiosos – o que vem mudando justamente nos últimos anos, e muito em razão dos habeas corpus de Gilmar Mendes. Diante do tema, fui conversar com quem mais entende dele hoje: Rubens Glezer, coordenador do projeto Supremo em Pauta, da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP). Glezer é um velho amigo (meu, não do Paulo Preto) e eu sabia que ele tinha coordenado a pesquisa mais aprofundada sobre isso até hoje. Ela ainda não foi publicada, porque está sob análise em uma revista científica.
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Na apuração paralela que eu fazia, porém, algo me chamou a atenção. Permitam-me apenas explicar rapidamente como funcionam as ações de impedimento (AImp, no site do Supremo) e as ações de suspeição (AS, no site do Supremo). As hipóteses de impedimento e suspeição estão previstas em lei, no Código de Processo Civil e no Código de Processo Penal. Qualquer juiz – incluindo os ministros do STF – pode se declarar impedido ou suspeito diante de um processo com base nessas hipóteses. E eles fazem isso muitas vezes. Se não fizerem, uma das partes pode argumentar isso no processo principal (o que ocorre bastante) ou entrar com uma ação própria para fazer esse questionamento: a Aimp ou a AS, dependendo da hipótese.
O rito processual dessas ações está previsto no regimento interno do STF. Idealmente, segundo a letra do regimento, funcionaria da seguinte forma. A parte entra com a ação, que é sempre relatada pelo presidente do tribunal (exceto se a imparcialidade dele for questionada, aí quem cuida é o vice-presidente). Se a ação não for “manifestamente improcedente”, o que permite que ela seja desde logo arquivada, o presidente deve oficiar o ministro questionado, ouvi-lo e, então, remeter o processo para ser julgado pelo plenário. Lá na reportagem, você vai descobrir que nunca o plenário do Supremo julgou uma ação dessas e o que os presidentes criaram uma fase extra, não prevista no regimento, nessas ações. Coisas do STF.
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O tema é complicado, mas uma das coisas que me chamaram a atenção foi uma decisão do ministro Dias Toffoli, em setembro de 2018, numa dessas ações, a AImp 45. Ela fazia parte do pacote que questionava a imparcialidade de Gilmar Mendes nas ações que envolviam os empresários Jacob Barata Filho (solto três vezes por ordem de Mendes), Lélis Teixeira e Eike Batista. Em poucas palavras, as ações questionavam se Gilmar não seria amigo íntimo de Barata Filho (lembra daquele casamento?) e se não estaria impedido de julgar porque os três eram (de alguma forma) clientes do escritório de Sérgio Bermudes, onde trabalha Guiomar Mendes, esposa do ministro.
Aqui a coisa fica um pouco complicada. O Código de Processo Penal (CPP) não traz essa hipótese de impedimento, diferentemente do Código de Processo Civil, mais recente, promulgado em 2015. O então PGR Rodrigo Janot não viu problema, porque o artigo 3º do CPP diz que “a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”. Por isso, ele argumentou que a hipótese do CPC valia também para esse caso criminal. Gilmar Mendes e Bermudes diziam o contrário.
Janot argumentou: “No entanto, por força do art. 3º do Código de Processo Penal, essas causas de impedimento e suspeição haverão de incidir, também, na esfera processual criminal, especialmente em decorrência do princípio da imparcialidade, de nível normativo hierárquico superior, seja ele constitucional ou supralegal”.
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As ações tomaram um curso muito comum para esse tipo de questionamento no STF: a presidência enrolou, as decisões principais acabaram referendadas pela Segunda Turma, e as ações que questionavam a imparcialidade de Mendes perderam o objeto e foram arquivadas. A questão do impedimento em razão de o ministro ter cônjuge trabalhando em escritório do qual uma das partes é cliente poderia ter ficado sem resposta, mas uma dessas ações foi arquivada por Toffoli um mês depois das outras quatro, que foram arquivadas no último mês da presidência de Cármen Lúcia.
E surpresa: Toffoli comprou a tese de Mendes e de Bermudes – que, no meio do caminho, também acabou encampada pela nova PGR, Raquel Dodge – e não enfrentou os argumentos de Janot. Eis o que o presidente do STF escreveu, citando a PGR:
“De qualquer modo, ainda que assim não fosse [se a ação não tivesse perdido o objeto], a hipótese retratada nos autos conduziria ao reconhecimento da improcedência da arguição, pois, como bem apontou a Procuradora-Geral da República, em sua manifestação, a situação de impedimento descrita ‘está contemplada no artigo 144, inciso VIII do Código de Processo Civil e não há idêntica previsão no artigo 252 do Código de Processo Penal. Assim, não se aplicam, por analogia ou subsidiariamente, as regras processuais civis ao processo penal, que tem rol taxativo de situações que implicam, objetivamente, no impedimento do juiz para o julgamento do caso. Não há lacuna a ser integrada pela regra do art. 3º do CPP. Quanto às hipóteses de suspeição, também não se vislumbra, da situação (…) narrada, adequação típica às situações previstas no artigo 254 do CPP.”
Uma coisa precisa ficar clara: como as AImp e AS não vão para o plenário, muito da jurisprudência (mas nem toda) que se constrói nelas vem da caneta do próprio presidente do STF, que acaba decidindo sozinho. Com a pouquíssima transparência que marca esses casos, Toffoli inaugurou uma novidade: cônjuge de juiz que trabalha em escritório que representa uma das partes no processo criminal não é causa de impedimento no processo criminal. Será que essa tese realmente deve prevalecer? Os demais ministros concordam com ela? O MPF está contente com essa posição da Raquel Dodge? Os argumentos foram bem pesados de um lado e de outro?
E você acha que essa discussão teve a atenção que merece? Pois é, nem eu.
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