Em menos de um mês, o ministro Luiz Fux revogou duas liminares dele mesmo, trazendo à tona o pior dos descaminhos do Supremo Tribunal Federal (STF). As duas decisões ganharam destaque na imprensa: o fim de temporada da novela do auxílio-moradia, que se arrastou pelos últimos quatro anos, e o recuo nas multas da tabela do frete, há apenas dois dias. Em ambos os casos, Fux arvorou-se em árbitro da vida pública nacional e ainda trabalhou para erodir a legitimidade do direito brasileiro, ao patrocinar decisões juridicamente inexplicáveis – ainda que politicamente muito compreensíveis.
Há um custo em o Supremo ter sido arrastado para o centro da política brasileira nas últimas décadas. Na política, idas e vindas são positivas: mostram que os atores dialogam e cedem em suas posições, buscando o consenso. Decisões coletivas desse tipo tendem a ser mais obedecidas. No Judiciário, além de esse vaivém fomentar insegurança jurídica e denunciar o voluntarismo de quem tem a caneta na mão, ele mina a autoridade que é própria ao direito. Afinal, se a lei e a interpretação jurídica não se diferenciam da política, por que os 11 ministros do STF devem ter a palavra final sobre a Constituição que rege a vida de todos os brasileiros?
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Esse custo é ainda mais alto quando um ministro, sozinho, resolve usar seu poder de liminar, emprestando para si a legitimidade de todo o tribunal, a fim de se tornar, na prática, o poder soberano de uma parcela da vida do país. É preciso ser justo e reconhecer que Fux não é o único nessa missão: desde que o Supremo em Números, da FGV-RJ, tabulou os dados pela primeira vez em 2014, sabemos que cerca de 90% das decisões do tribunal em um ano são monocráticas. Daí que se tenha começado a falar em “11 ilhas”, “11 Supremos” ou “ministocracia” para se referir ao poder exercido individualmente na corte.
O relatório da FGV-RJ mostrou também que, em média, as decisões liminares no controle concentrado de constitucionalidade – processos que discutem a validade das leis em abstrato, e não casos concretos – são as que mais demoram em ser julgadas pelo plenário, ficando vigentes por uma média de incríveis 6,2 anos. Pouca coisa mudou desde então. Liminares continuam a ser concedidas no atacado, e os processos só vão para o plenário depois de liberados pelo relator e incluídos na pauta pelo presidente da corte. O julgamento só é concluído se ninguém pedir vista. (Há parlamentares querendo reagir a isso tudo aprovando o PL 7.104/2017, que proíbe os ministros de decidirem sozinhos sobre ações de controle concentrado, mas a discussão da conveniência dessa medida fica para outra oportunidade).
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Se esse imenso poder individual fosse exercido de forma consistente, isso ainda seria uma deficiência institucional, mas o problema maior é que muitas vezes os ministros sequer fazem isso. Quem aí se lembra do caso da entrevista do ex-presidente Lula da Silva, liberada por liminar do Ricardo Lewandowski, depois cassada por uma liminar do Luiz Fux que teve de ser confirmada por decisão solitária do presidente do tribunal, Dias Toffoli, num ziguezague processual de fazer corar o mais heterodoxo dos juristas?
Os casos recentes do auxílio-moradia e das multas da tabela do frete também são ilustrativos. No primeiro caso, depois de liberar a rodo o pagamento de auxílio-moradia a carreiras do Judiciário e do Ministério Público, Fux sentou em cima do processo, com a conivência dos colegas, e depois o enviou para a malfadada negociação na Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal, coordenada pela AGU, uma invencionice que o professor Conrado Hübner, da USP, apelidou de “negociação de constitucionalidade”. Quando o Congresso enfim aprovou o aumento do teto, no mês passado, Fux simplesmente reverteu suas liminares sem nada dizer sobre a questão de direito que estava posta sobre a mesa. Como é que os liberais vão responder à esquerda quando esta afirma que o direito não passa de um manda quem pode, obedece quem tem juízo?
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A revogação da liminar sobre as multas da tabela do frete vai na mesma linha, desta vez em tempo recorde. Na quinta-feira (6), Fux suspendeu as multas para quem descumprisse o tabelamento forçado do preço do frete imposto por lei e pela ANTT, depois da greve dos caminhoneiros, em maio. É verdade que nada disse sobre a constitucionalidade do tabelamento em si, mas, seis dias depois, voltou atrás em sua decisão, afirmando que a suspensão das multas poderia atrapalhar as negociações entre motoristas, setor produtivo e o governo Bolsonaro.
Qual a relevância jurídica disso? Ninguém sabe. Na verdade, Fux sucumbiu à ameaça de novas paralisações – o que até pode ser uma razão de interesse público que fundamente sua decisão – mas a pergunta que fica é por que, para começo de conversa, ele se sentiu autorizado a conceder a liminar no dia 6? Faltou prudência, para dizer o mínimo, e a necessidade dela é tanto maior quanto maior o poder que se exerce.
Já houve um caso grave em que o então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB), deu um perdido no oficial de Justiça que trazia a intimação para que deixasse a presidência da casa por ordem do ministro Marco Aurélio e, em seguida, apresentou uma contestação à decisão para não obedecê-la. O Supremo agiu rápido em colegiado e, dois dias depois, na prática, desautorizou Marco Aurélio. Se a tendência da farra das liminares e do ativismo processual não for contida, e a erosão da legitimidade do tribunal não cessar, pode chegar o dia em que uma decisão do plenário será desobedecida. Esse é o temor não verbalizado de muitos, e não há jurisprudência para crise constitucional.
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