Antes desconhecido do grande público, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) tornou-se pivô de discussões políticas pela segunda vez em menos de seis meses – e não por acaso, uma vez que seu nome está ligado, desde o fim das eleições, a Sergio Moro, ministro do governo Jair Bolsonaro (PSL) que é o maior antagonista político do bloco da maioria, o chamado “centrão”, e do PT, por razões óbvias. Mesmo tendo voltado para o Ministério da Economia, o Coaf segue com a equipe montada por Moro e com a imagem associada à do ex-juiz.
A bola da vez, que divide as atenções com a reforma da Previdência, é a suposta apuração que o Coaf estaria fazendo, a pedido da Polícia Federal (PF), das movimentações financeiras de Glenn Greenwald, jornalista fundador do The Intercept, e um dos repórteres da série “Vaza Jato”. Todo o alarme partiu de uma nota divulgada pelo site O Antagonista, que ganhou repercussão na imprensa e respostas de figuras políticas de ponta, como o senador Renan Calheiros e o ex-deputado Wadih Damous.
Curioso que esse caldo, um tanto artificial, foi o ponto de partida para o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU) pedir a instauração de um processo de apuração, com pedido liminar. Segundo O Antagonista, o pedido da PF ao Coaf teria como objetivo levantar indícios sobre se Greenwald teria encomendado a ação do suposto hacker que teria invadido o celular de autoridades para roubar as conversas divulgadas nas reportagens da série.
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O MPTCU vê nisso, se confirmado, um desvio de finalidade. O relator do processo, ministro Bruno Dantas, que chegou ao TCU indicado pelo Senado e que orbita a esfera de influência de Renan Calheiros, concordou: “São deveras graves as questões colocadas pelo douto Subprocurador-Geral. Se confirmados os apontamentos por ele noticiados, estaremos diante de um quadro gravíssimo de manipulação do aparelho repressor do estado contra jornalistas que divulgam informações que trazem incômodo aos membros do governo”.
A narrativa – alguns diriam receio – de um Estado policial e autoritário é a principal bandeira retórica que une o centrão à esquerda petista e para-petista contra Sergio Moro. Aparentemente partilhando desse receio, Dantas intimou o Ministério da Economia e o Coaf a prestar informações, que chegaram antes de vencer o prazo de 24h dado pelo ministro. Paulo Guedes disse não saber de nada, porque o Coaf tem autonomia. O presidente substituto do órgão, porém, não negou. E aí a confusão esquentou.
Alegando sigilo e que o Coaf não comenta casos concretos, o substituto afirmou que “não compete ao Coaf atender a pedidos de RIF (relatórios de inteligência financeira) feitos pela Polícia Federal” e que eventuais irregularidades detectadas poderiam dar ensejo a procedimentos que, só então, seriam compartilhados com a PF. Mas informou que “poderá ocorrer, no entanto, que o Coaf produza um RIF ao obter, por comunicação feita pela Polícia Federal, algum elemento de informação que se revele, em conjunto com informações já possuídas pelo Coaf, significativo para identificação de fundados indícios da prática de crime de lavagem de dinheiro”.
Contudo, se é verdade que o caso pode estar cercado de alarmismo político, tampouco é isento razões para se ficar com a pulga atrás da orelha. Advogados estão quase todos alarmados – o que não é novidade no contexto pós-Lava Jato –, mas o que chama atenção, nesse caso, é que diversos promotores e procuradores, alguns da alta cúpula do Ministério Público Federal (MPF), ouvidos reservadamente, oscilam entre “precisamos de mais informações para opinar” e “espero que não tenham feito isso, porque seria grave”. São pessoas que, todas, não veem nada de irregular nas conversas reveladas pelo The Intercept e que têm criticado, como a ampla maioria dos membros do Ministério Público, os supostos crimes de hackeamento.
O que acontece é que, de fato, o Coaf não tem competência investigativa. Nesse campo, o que o órgão faz é produzir relatórios de inteligência financeira, com base em informações que instituições financeiras têm obrigação legal de enviar-lhe ou que são requisitadas pelo próprio Coaf dessas mesmas instituições. Nem a lei nem o decreto que instituiu o novo Estatuto do órgão, em 1º de janeiro deste ano, permitem ao Coaf atender a pedidos da Polícia Federal.
O que alguns procuradores pontuam, no entanto, é que, se algum procedimento realmente existir, será necessário verificar o teor da comunicação entre a PF e o Coaf, e o contexto em que os inquéritos sigilos estão se desenrolando. Uma coisa seria a PF, sem nenhum indício senão teorias da conspiração de internet, como primeiro ato de investigação, pedir ou – pior – determinar ao Coaf a investigação individualizada de Glenn Greenwald. Diferente seria, como pontuado no ofício enviado ao TCU, a PF enviar livremente ao Coaf informações, apuradas em uma investigação já robusta, para que o Coaf desse o encaminhamento correto segundo a lei. E mesmo aí ficaria a pergunta: os inquéritos que correm na PF não são sigilosos?
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Em tese, o tema é preocupante mesmo para membros do Ministério Público que sempre foram entusiastas da Lava Jato – mas, até agora, não há nenhum indício concreto, salvo a nota d´O Antagonista, que aponte para isso. Por outro lado, a gravidade da eventual situação justificaria a ação que o MPTCU está recomendando, isto é, um procedimento fiscalizatório no Coaf? Aliás, teria o TCU competência para isso, ou essa competência seria da Justiça Federal, a pedido do Ministério Público? O Coaf insistiria na tese do sigilo, se a lei diz que “nenhum processo, documento ou informação poderá ser sonegado ao Tribunal [TCU] em suas inspeções ou auditorias, sob qualquer pretexto”?
Há ainda outra questão de difícil resposta: até que ponto se estende a proteção ao sigilo das fontes de um jornalista? É ponto pacífico na jurisprudência do próprio STF que “nenhum direito é absoluto”. Pode o sigilo da fonte ser invocado para blindar um jornalista de investigação, se houver fundados indícios de crimes? Por outro lado, a Convenção Americana dos Direitos Humanos, que é lei no Brasil, dispõe que “não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos [...] nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões”. Em que ponto uma apuração policial se transformaria em um meio indireto de restrição da liberdade de expressão?
Essas são perguntas para as quais, até agora, não há sequer fatos que possam adiantar um ensaio de resposta. Será preciso esperar os desdobramentos do caso – até porque, nesta quinta-feira (11), a Rede Sustentabilidade acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) para que a corte barre qualquer investigação que porventura esteja em curso contra Greenwald e requeira informações das autoridades competentes. Gilmar Mendes foi sorteado relator, mas, em razão do recesso, o pedido ainda está na mesa do presidente do Supremo, Dias Toffoli.