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Renan Barbosa

Renan Barbosa

Todas as disputas por trás do impasse sobre a criminalização da homofobia

Almoço de Bolsonaro com Evangélicos
Impasse no julgamento da criminalização da homofobia envolve costura entre bancada evangélica, ativistas LGBT e os três Poderes. Foto: Mauro Pimentel / AFP (Foto: )

Não foram uma nem duas, mas cinco interrupções, até agora, do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4733, que pedem ao Supremo Tribunal Federal (STF) o reconhecimento da omissão do Congresso Nacional em legislar sobre a população LGBT e, também, a equiparação da homofobia e da transfobia ao conceito jurídico de racismo, para fins de aplicação da Lei 7.716/1989. Na última sessão, nesta quinta-feira (23), o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, estava nitidamente se equilibrando em um impasse delicado. Por que Toffoli interrompeu o julgamento pela quinta vez desde fevereiro?

Porque, entre a pressão de seus pares e a da bancada evangélica, Toffoli optou mais uma vez pelos segundos. Mas a paciência está acabando. O auge da tensão durante a sessão desta semana foi quando Toffoli ia sugerir a suspensão do julgamento, em deferência ao Congresso (supõe-se, já que ele não chegou de fato a sugerir), contrariando a posição de Celso de Mello, e este retrucou ao presidente, lembrando que os quatro ministros que já haviam votado, em fevereiro, foram alvo de um pedido de impeachment coletivo “absurdo”.

Celso de Mello fez duas coisas: primeiro, apelou ao espírito de corpo do tribunal – mesmo que se engalfinhem entre si em certos temas, os ministros costumam ser sensíveis ao que enxergam como contestação à sua autoridade. Segundo, Mello disse a Toffoli, nas entrelinhas, algo como “Presidente, o senhor está patrocinando um inquérito de legalidade questionável, dizendo o mínimo, para apurar ataques ao tribunal, e agora vai dobrar a espinha para ameaças de retaliação?”. Dava pra sentir o peso nas costas de Toffoli. Luiz Fux emendou com força: “É um ato atentatório à dignidade da jurisdição [o pedido de impeachment]. Se, por esse motivo [criminalizar a homofobia], a corte tiver que sofrer algum tipo de retaliação, que soframos todos nós”.

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O presidente cedeu, nove ministros votaram para continuarem a votação do mérito (Toffoli e Marco Aurélio votaram pela suspensão), mas assim que o tribunal formou maioria de seis votos pela criminalização, aproveitando que já passava das seis da tarde, Toffoli encerrou a sessão, cumprindo sua intenção original, que já era conhecida da bancada evangélica desde a véspera. Mas o presidente do STF também mandou um recado: lembrou que era a quinta vez, de um total de 40 sessões no semestre, que o tema estava em pauta. Era como se dissesse: “Estou cumprindo minha parte, dando tempo ao Congresso, mas me ajudem a ajudar vocês”.

Como o impasse começou

Todo mundo está andando sobre o fio da navalha. Quando o tema apareceu na pauta do primeiro semestre de 2019, divulgada pelo presidente do Supremo em dezembro do ano passado, já era possível antever as dificuldades. Primeiro, pelo tema: o STF revisitaria um assunto que se arrastou por mais de uma década no Congresso, sem consenso, e estava sendo convidado a dar um passo jurídico inédito: estender a evolução das decisões sobre inconstitucionalidade por omissão ao campo do direito penal. Até mesmo juristas de esquerda manifestaram preocupação. Como o STF chegou a esse ponto, contei em detalhes numa reportagem em fevereiro.

Mas não foi isso que catalisou o impasse. A bancada evangélica comeu bola e só ficou sabendo que as ações seriam julgadas dois dias antes do início do julgamento, em 11 de fevereiro, quando os grupos de WhatsApp da base eleitoral começaram a esquentar. No dia 12, estiveram com Toffoli e tentaram tirar o tema de pauta, mas o pedido foi negado. O presidente abriu o jogo: estava sendo pressionado pelo decano (ministro mais antigo) da corte, Celso de Mello, a colocar o tema em pauta. Mello é relator da ADO 26, que liberou para julgamento pouco menos de um mês antes de Toffoli divulgar a pauta. O MI 4733, de relatoria do ministro Fachin, estava liberado para julgamento desde 2017.

Embora tenha começado a julgar em 13 de fevereiro, o tribunal sentiu a pressão. Contribuiu para isso o clima que se instalava no Congresso: duas semanas antes, com a abertura do ano legislativo, começavam a pipocar os pedidos de CPI da Lava Toga e ainda se falava com força na reversão da PEC da Bengala. Se os ataques ao tribunal unem os ministros no corporativismo, o combate ao ativismo judicial aproxima, pelo menos na retórica, senadores tão díspares quanto Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e Renan Calheiros (MDB-AL). O STF pagaria para ver?

A verve de Celso de Mello ajudou um pouco e empurrou o impasse para frente: era para o relator da ADO 26 ter apresentado um voto, mas ele leu um livro de 154 páginas ao longo de três intermináveis sessões, acreditando escrever seu nome na história, como tantos colegas ministros fizeram questão de frisar. Na quarta sessão, deu tempo de Fachin, Alexandre de Moraes e Roberto Barroso votarem, sinalizando com quatro votos para onde o tribunal iria: declarar a omissão do Congresso e interpretar o conceito de racismo de modo a abranger a homofobia e a transfobia, aplicando para as hipóteses os crimes previstos na lei 7.716/1989, até que o Legislativo faça uma lei.

O que aconteceu nesses três meses

Com a sessão suspensa pela quarta vez, em 21 de fevereiro, sem data para voltar, a bola foi jogada para o Congresso. Um pequeno parêntese: o projeto de lei que esteve mais próximo de ser aprovado começou a tramitar na Câmara em 2001, foi aprovado em 2006 e passou para o Senado, onde emperrou e terminou arquivado em 2014. Naquela época, a bancada evangélica não era nem de longe uma força política tão relevante e organizada. A situação se inverteu: hoje o Senado é mais tranquilo em relação ao tema (tanto que a CCJ aprovou um projeto na quarta-feira); a Câmara, não.

Com a bola de volta ao Congresso, Rodrigo Maia (DEM-RJ) escalou para o jogo os deputados Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) e Marco Feliciano (Pode-SP), dois líderes da bancada evangélica com traquejo político e a confiança do presidente Jair Bolsonaro (PSL). Eles demoraram um mês pra começar a jogar, mas finalmente começaram a conceber, separadamente, projetos de lei sobre o tema. A ideia inicial era reformar a Lei 7.716/1989 e talvez criar uma qualificadora no crime de injúria (como já existe a injúria racial), contemplando a linha indicada pelo STF.

Mas é aí que a coisa começa ficar delicada. A Lei 7.716/1989 traz uma série de condutas concretas que são crimes: como se recusar a vender um produto para alguém em razão de “discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, como diz a atual redação, de 1997 (A original dizia apenas “preconceitos de raça ou de cor”). O problema maior está no artigo 20, que prevê o crime de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”, que passaria a incluir “orientação sexual” e “identidade de gênero” – também “sexo”, pelo projeto aprovado pela CCJ do Senado. Esse é o artigo preocupante para religiosos e defensores da liberdade de expressão.

O projeto que naufragou no Senado em 2014 previa a ressalva de que o artigo 20 não se aplicaria “à manifestação pacífica de pensamento decorrente de atos de fé, fundada na liberdade de consciência e de crença de que trata o inciso VI do art. 5º da Constituição Federal”. Marco Feliciano seguiu por essa linha e, no início do mês, protocolou um projeto para incluir a discriminação orientação sexual (mas não por identidade de gênero; guarde essa informação!) em todos os artigos da Lei 7.716/1989, ressalvados aqueles que “professarem visão discordante a determinado comportamento social, desde que a mesma se dê no contexto do uso regular dos direitos de liberdade de crença e de livre exercício dos cultos religiosos, e que não incite a prática de violência”.

Sóstenes considerou a redação ampla demais. Orientado por técnicos do STF, também já fora aconselhado a não investir em inserir exceções nos comandos normativos, o que o fez mudar o foco do projeto. A bancada, a princípio, resolveu não mexer em nada que possa criar conflito com a liberdade de expressão, como o artigo 20 da Lei 7.716/1989 ou o crime de injúria. Feliciano retirou a iniciativa do PL na semana passada, em nome do consenso que Sóstenes está construindo com a bancada, partidos de centro e a esquerda – quem mais resiste até agora é o PSOL. Neste momento, Sóstenes trabalha nos ajustes finais da redação do projeto, que deve trazer qualificadoras para os crimes de homicídio e lesão corporal – assim como ocorre no caso do “feminicídio”.

Inicialmente, o projeto de consenso pretendia inserir as qualificadoras apenas para crimes motivados por “orientação sexual” (abrangendo gays, lésbicas e bissexuais), mas não por “identidade de gênero” (abrangendo transgêneros). A avaliação da bancada evangélica é que nenhum projeto que contenha menção a “identidade de gênero” será aprovado na Câmara, porque o termo funciona como uma cortina de fumaça para a ideologia de gênero, ou uma espécie de gatilho que atiça a base eleitoral evangélica.

Na véspera do julgamento, nos corredores do Câmara, Sóstenes explicou isso a um proeminente ativista da causa LGBT, que sugeriu que, em vez de “identidade de gênero”, o projeto falasse em “pessoas transgênero”, para que essa parcela da população não ficasse excluída da proteção legal.

O parlamentar aceitou a sugestão e fez questão de ressaltar que os cristãos são contra a violência, que são contra também a violência contra pessoas transgênero (e havia uma mulher trans participando da conversa) – o problema é a ideologia de gênero. (Sóstenes também reclamou do termo “orientação sexual”, porque passa a impressão de que alguém orienta as crianças a gostar de homem ou mulher, mas não vê problema em incluí-lo na lei).

Sóstenes também está garantindo a interlocutores que, se seu projeto for o aprovado, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) o sanciona na mesma hora.

Ativistas e parlamentares de esquerda, embora estejam trabalhando pelo projeto de consenso, preferem que, por via das dúvidas, o STF termine o julgamento – como quer a maioria dos ministros. Na quinta-feira, o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, Helder Salomão (PT-ES), e os deputados Erika Kokay (PT-DF), David Miranda (PSOL-RJ), Carlos Veras (PT-PE), Tulio Gadelha (PDT-PE) e Camilo Capiberibe (PSB-AP) reuniram-se com o presidente Dias Toffoli para pedir que o tribunal concluísse o julgamento.

A bancada evangélica, porém, estava certa de que ele não terminaria na quinta-feira. "O Toffoli sempre cumpre os compromissos. Como ele vai fazer para cumprir, eu não sei. Mas ele sempre cumpre", me disse um membro da bancada. De fato, a próxima sessão sobre o tema ficou para 05 de junho. O que o Congresso fará até lá?

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