No início de 1919, enquanto dois advogados nordestinos radicados no Paraná matutavam a ideia de criar o jornal que viria a ser a Gazeta do Povo, outro jurista baiano que já tinha inscrito seu nome na história do país se preparava para concorrer pela quarta e última vez à Presidência. O Brasil era mesmo a República dos bacharéis.
Eterno derrotado nas urnas, Rui Barbosa foi o campeão moral da Primeira República. No mesmo ano de fundação da Gazeta do Povo, o Supremo Tribunal Federal (STF) estava diante de um habeas corpus, assinado por Rui, em defesa de um jornalista alagoano que vinha sofrendo achaques da polícia. No julgamento da causa, o tribunal decidiu pela primeira vez sobre a proibição da censura prévia.
Não foi um caminho fácil até ali: o STF enfrentara a desobediência pura e simples dos primeiros presidentes republicanos, mas foi tentando ganhar a estatura de um verdadeiro terceiro poder, aos trancos e barrancos, com base na chamada “doutrina brasileira do habeas corpus”, que Rui inaugurara como advogado no tribunal em 1892.
Algum direito sendo desrespeitado? Habeas corpus! Na prática, foi a forma que o jurista encontrou – e o STF adotou – de tornar efetivo o papel que a Constituição de 1891 queria para o STF e que os liberais viam na Suprema Corte dos Estados Unidos.
Mas a lenta construção de espaço para o Judiciário em um país sem a tradição robusta do Estado de Direito inglês seria interrompida ainda na Primeira República. Essa maturação foi acompanhada com entusiasmo pela imprensa e pela população nas galerias do antigo prédio do STF no Rio de Janeiro até 1926, quando a primeira e única emenda à Constituição de 1891 atingiu em cheio a corte.
No apagar das luzes do conturbado governo Arthur Bernardes, o Supremo foi tolhido da competência de analisar a constitucionalidade de decretação de estado de sítio – instrumento dos governos autoritários de então – e os habeas corpus ficaram restritos a casos que envolviam tão-somente a liberdade de locomoção. Era a ferida de morte na construção de Rui Barbosa.
“Mas a história de rupturas institucionais deixou um legado, inclusive para o jornalismo: o foco excessivo nos bastidores, nas relações e nas fofocas do poder. Jornalistas, e mesmo juristas, estão esquecendo a pergunta fundamental: quem tem razão em um caso? Qual a melhor resposta para a controvérsia jurídica diante dos ministros?”
Daí em diante, ladeira abaixo. Getúlio Vargas deu a si mesmo a competência de rever as decisões do tribunal. Em 1931, aposentou numa canetada cinco ministros. Em 1939, cassou uma decisão do STF pela primeira vez na história.
Na experiência democrática de 1946-1964, o tribunal se equilibrou como pode em um país conflagrado por tentativas de golpe e pressionado pela inflação. Mais de uma vez, ministros tiveram de reconhecer que o direito nada podia contra o poder das armas. Quando aparecia na imprensa em seus casos mais rumorosos, o tribunal estava invariavelmente metido em alguma confusão com o governo ou o general da vez.
Veio o golpe. A ditadura, primeiro envergonhada, achou que o STF era “intangível” – palavras de Costa e Silva. Mas seus ministros passaram a reagir como podiam, principalmente pela concessão de habeas corpus. Isso geraria um rebento inesperado: foi apenas em 1964 que o tribunal concedeu, e monocraticamente, a primeira liminar em habeas corpus em sua história, na esteira dos expurgos que o regime patrocinava.
Os militares contra-atacaram. Em 1966, o AI-2 aumentou o número de ministros de 11 para 16. Em 1969, escancarada, a ditadura aposentou compulsoriamente três ministros do Supremo e outorgou sua Lei de Segurança Nacional mais severa. O Congresso estava fechado desde o AI-5; o Supremo, impedido de julgar habeas corpus de presos políticos.
Com a Constituição de 1988, o STF assumiu enfim a estatura de poder autônomo. A corte passou a personagem principal no noticiário nacional. A ciência política brasileira acompanhou o movimento e começou a empregar métodos mais sofisticados de compreensão do tribunal. Os jornalistas refinaram a cobertura.
Mas a história de rupturas institucionais deixou um legado, inclusive para o jornalismo: o foco excessivo nos bastidores, nas relações e nas fofocas do poder.
Jornalistas, e mesmo juristas, estão esquecendo a pergunta fundamental: quem tem razão em um caso? Qual a melhor resposta para a controvérsia jurídica diante dos ministros? Essas questões orientam todo o debate sobre os casos diante da Suprema Corte dos Estados Unidos, e repórteres e colunistas preocupam-se com ela. No Brasil, nem tanto.
Essa é a diferença entre o direito e a pura política de interesses. É uma tradição que tem dificuldade de se criar raízes entre nós, mas essencial para cumprir as promessas do Estado de Direito, do governo das leis, e não dos homens. Que os próximos 100 anos nos tragam notícias melhores.
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