Ouça este conteúdo
Este não é um governo liberal. É importante frisar isso, mesmo após o presidente apoiar — liderar — uma manifestação que pedia o fechamento do Congresso e a aplicação de um “AI-5”.
Bolsonaro faz troça das instituições, procura briga onde não há e, onde deveria haver (fundão que o diga), finge-se de presidente para não fazer o que se propôs.
Seu governo, acoplado ao clã familiar, repete seus valores e trejeitos. Não aceita os freios e contrapesos dos demais poderes, persegue jornalistas, financia a imprensa que lhe adula.
É um presidente que gosta de bajuladores, que desrespeita a institucionalidade. Que monta milícias virtuais e institui carreatas anti-ciência, lideradas por empresários ricos que se julgam “povo”. Empresários que não doam uma fração de seu patrimônio para o confronto à crise, mas que arrotam “o poder da caridade voluntária” em jantares para liberais de inventário — também conhecidos como "herdeiros cuidando do próprio rabo".
Isso deveria ser bastante para alegar que não vivemos um governo liberal. Mas há o bolsonarista sabujo, que prefire dizer “calma lá, tem o Guedes e sua equipe!”. Uma equipe que, a despeito das boas palestras, sequer apresentou uma reforma administrativa. Uma equipe ruim de PIB mas boa de like, especializada em hidroxicloroquina para não perder o pique do trader apostador dos velhos tempos.
Mas é uma equipe inequivocamente liberal… em termos econômicos. E que, a despeito da ausência de resultados, é sabedora das oportunidades que se desfraldam. Nunca as contradições do estado brasileiro estiveram tão expostas — com as vísceras às vistas — prontas para serem atacadas por homens públicos dotados de um plano. Um plano liberal, de crise, que deveria ser a linha mestra de ação deste governo.
Vimos, na última semana, Ivete Sangalo pedindo o redirecionamento do fundão para o combate ao COVID-19. Vimos apoio massivo, nas redes, ao corte de gastos supérfluos, ao olhar atento sobre privilégios e supersalários.
Poderíamos combinar, pela primeira vez, um forte discurso de austeridade — uma reforma administrativa de emergência — com o apelo social de uma renda-mínima temporária, que não deixe nossos mais vulneráveis desguarnecidos. Um gol de placa político.
Mas nem começamos. A equipe econômica, à espera de um milagre, operou em compasso de espera, enquanto o gabinete do ódio tomava as rédeas do país.
Abandonou-se qualquer estratégia que mostrasse para o país, preso em suas casas, a quantidade de dinheiro desperdiçado pela sanha de nossas corporações. Nossos liberais econômicos ficaram quietos, acovardados, assistindo o picadeiro macabro de um presidente insano enquanto acendiam velas para a cloroquina.
Nem me refiro aqui a um governo de união nacional — aproximando a todos, sem barganhas — que converteria Bolsonaro em líder de fato neste duro momento. Essa oportunidade jamais existiu.
Mas lamento, profundamente, que o tempo perdido em negação não tenha sido usado para a construção dessa alternativa politicamente defensável, verdadeiramente popular e transformadora do ponto de vista do estado.
Propostas vieram — e de diversas áreas. O economista Matheus Hector, do Insper e do Movimento Livres, propôs uma contrapartida orçamentária à renda mínima de crise com dados e coerência.
Falava — e aqui resumo e simplifico — em faixas de corte nos salários do funcionalismo — respeitando um piso —, gerando fluxo de caixa para tamanho investimento.
Sua proposta, caso levada à frente, motivaria discussões diversas. E se o corte fosse mais profundo nos salários mais altos? E se incidisse também nas super-aposentadorias? E se atingisse penduricalhos? Eis aí um debate saudável em tempos de expansão de gastos e emissão de dívidas.
Veremos, no próximo mês, os estados tendo sérios problemas de arrecadação e dificuldades para pagarem suas folhas. Gostando ou não, a conta chegará, e este debate se fará inevitável.
Perdemos a chance de travá-lo em nosso campo, quando a opinião pública estava do nosso lado e a população demandava soluções firmes do governo.
Agora já foi.