Mostraram-se duvidosas do cimento da democracia na América, esquecendo-se das lições de Tocqueville. Afinal, se Trump é sua grande ameaça, eleições americanas podem ser muito perigosas para a democracia. A vitória presumida de Biden assumia ares de profetismo apocalíptico. Ou se vence Trump, ou o mundo irá perecer. Mas não há receios: a vitória já está certa. As pesquisas mostram as vantagens, larguíssimas, incomparáveis, donde não faz sentido qualquer temor. Os democratas desfilarão nas duas casas com folga. O leitor do NYT suspira aliviado.
Cada manchete do New York Times ou do Wall Street Journal estampava o destino incoercível da América.“Trump é a maior ameaça à democracia americana desde a Segunda Guerra”; “Biden abre maior vantagem sobre um candidato republicano na história recente”. A tônica era essa. O terror de Trump; a luminosidade do Partido Democrata. Como na batalha cósmica do mito persa, as forças das trevas de Arihman se defrontavam com as forças da luz de Ahura Mazda. Eles apenas pareciam ter se esquecido que em 2016 também disseram a mesma coisa mas o eleitor optou pelas “trevas”. Tolo eleitor, pequeno assecla do “Mal”.
Desta vez, contudo, parece que a profecia se realizará. O eleitor, essa criatura desprezada pelos jornalistas e pelos intelectuais de gabinete, será reabilitado. No momento em que escrevo essa coluna, Biden corre para cada vez mais perto da sonhada presidência. Ele se aproxima do empate na Georgia; pega Nevada, ganha no republicano Arizona. Há quem diga ser o destino irônico de Trump, que desrespeitou a memória de John McCain, soldado no Vietnã e por vinte anos senador no Arizona. Não sabemos, mas cabe meditar o fato de que os mortos pregam as suas peças nos vivos, e que a hübris é na tragédia o aguilhão da derrota.
Trump se estrebucha em um espetáculo algo patético, escrevendo tweets que são derrubados, pronunciando discursos que são cortados; a campanha quer recontagem, quer ir para a Suprema Corte, quer judicializar. O grande clown lança o caos: eles nos roubaram! É fraude! Fake news dos dois lados explodem na internet. Ninguém sabe qual notícia é correta; notícias se atropelam umas às outras. Histrionismo à parte, essa eleição dos Estados Unidos se assemelha a um quadro de Pollock, as manchas de tinta jogadas caoticamente produzem uma imagem igualmente incompreensível. O método de voto complicado produz uma apuração complicadíssima. Acusam-se os democratas de colocar mais votos; as contagens param; vantagens inesperadas aparecem. Quem poderá dizer o que está acontecendo, de fato? A dúvida é certa.
A certeza da vitória democrata é cada vez mais líquida. Uma certeza dúbia. Dúbia porque não foi definitiva e incontestável como se pensou. Dúbia porque Trump, o candidato do homem-branco-protestante-misógino-racista-fascista avançou entre todas as minorias; dúbia porque o Texas quase vira reduto azul; dúbia porque, na hora decisiva, o Arizona lhe faltou; dúbia porque todas as previsões estavam erradas. Nobody knows anything.
Há muita verdade quando se pede para vermos com atenção a eleição de 2020 porque ela pode ser o espelho da nossa em 2022. Acho, contudo, que a eleição americana reflete algo mais fundo do que um padrão eleitoral. Ela revela a inermidade, a falta de aderência entre a opinião que estamos construindo, elaborando e reelaaborando, em jornais, revistas, TV e a realidade de fato. E esse problema é mais radical do que a orientação descarada do NYT e da CNN.
Pois não se diga que os conservadores previram esta eleição. Quem previu o Arizona? Quem previu a incerteza dilaceradora da disputa? Houve quem previra a vitória de Trump por torcer por ele. Esses parecem ter perdido também, já que as chances de vitória do Big Orange Man são cada vez mais escassas. Houve quem previra sua derrota fulminante. Esses perderam rotundamente; se houver derrota, não lhe cabe o adjetivo “fulminante”. Houve quem previra que as eleições seriam decididas pelo voto das minorias. Ou pelo COVID. Quem pode dizer? As certezas se abalaram e a única atitude digna é reconhecer com humildade a nossa impotência cognitiva perante a torrente de informações vinda de todos os lados, inabarcável, esmagadora.
Creio que estamos em uma fase muito peculiar no mundo ocidental. Nessa fase de transição é difícil estimar o que vai acontecer no futuro. Não há um curso de ação previsível como ainda existia durante a guerra fria. A guerra fria foi a última época de certezas mais ou menos estáveis. O mundo se reconhecia entre dois colossos. A URSS e os Estados Unidos, comunismo e capitalismo, cortina de ferro e mundo livre. Uma potência queria destruir a outra; cada uma delas queria influenciar os países para lutarem a sua guerra. A qualquer momento, a ameaça da grande guerra atômica. Época de incertezas entre balizas de certezas. Nossa época é a de incertezas entre balizas quebradas cujo número não sabemos contar e que mudam de lugar a cada minuto sem padrão algorítmico. Afinal, na guerra fria o que cada polo representava era razoavelmente exato. Até vir a maior surpresa do final do século: a queda do mundo soviético. No Livro Negro do Comunismo, Stephane Courtois diz que, a despeito das milhões de análises feitas pelos estudiosos do comunismo, o fato em si do esfacelamento da URSS sob a perestroika e a glasnost, sobretudo o modo como essa destruição foi fácil, profunda e arrasadora não havia sido prevista pela maior parte dos estudiosos. Foi um assombro.
Assim assombrados prosseguimos, embora não pelas mesmas razões. Quando neste anno domini de 2020 não sabemos quem é o presidente dos Estados Unidos numa eleição tão obscura quanto uma caixa preta - ficamos assombrados. Assombrados estamos todos nós, pois não há certezas razoáveis nessa ordem do mundo: ela penderá para a China? E o mundo islâmico, o que virá dele? A onda de direita acabou? As próximas décadas serão mais conservadoras? O progressismo se afirmará implacavelmente? Qual a guinada da Rússia? A segunda onda da pandemia provocará que reação global?
Diante da perplexidade, resta nos atermos à reação filosófica primária, que Aristóteles indicou como o início da busca do conhecimento. Olhando o espetáculo deste mundo velocíssimo, caímos na imobilidade contemplativa do thaumazein, do espanto.
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