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A cena em que o outrora superministro Paulo Guedes é conduzido para fora da coletiva de imprensa por um impaciente General Ramos — ladeado por Ricardo Barros, novo líder de governo — serviria como Grand Finale perfeito para a epopéia ilusória do liberalismo bolsonarista. Atônito, Guedes tenta fazer troça — tira onda com a “governabilidade”, como se negasse o novo momento. Carregado como fardo, Guedes se assemelha às estátuas derrubadas pelos militantes fascistóides do Black Lives Matter: é símbolo caído de um tempo que se foi.
Bolsonaro é cada vez menos o candidato vencedor de 2018 e cada vez mais o deputado de baixo clero ligado à causa militar. Percebam: a lógica fundante de seu governo, composto pelo liberalismo de Guedes, o lavajatismo de Moro e o olavismo da ala ideológica, se foi. Mesmo seus conflitos internos foram resolvidos pelo misto de cooptação fisiológica com militarismo antiquado. É um Bolsonaro vintage. Mais: um Bolsonaro setentista, emulando a construção política da ARENA, partido político oficial da ditadura militar.
A visão consolidada na mentalidade do brasileiro sobre o que era “direita” até a primeira década deste novo século era justamente esta — a mistura entre militarismo e oligarquias. O sustentáculo político do regime militar foi a simbiose entre lideranças coronelistas — fundadoras a posteriori do PFL — e o corpo militar dirigente, que dava ordens através de seu centralismo (anti)democrático e sua perspectiva particular de desenvolvimento nacional.
Tal “aliança” — representada na sigla Aliança Renovadora Nacional – ARENA — é também nome do finado partido do atual presidente; diferente dele, porém, durou ao menos duas décadas, desfazendo-se após a redemocratização. Natural. O ciclo dos militares se encerrara; o coronelismo, por seu turno, manteve-se de pé, com prestígio diminuto. Foi base dos governos FHC, Lula, Dilma e Temer. Outrora “inimigo” dos Bolsonaro, fez-se “governo” tão logo o sonho ideológico morreu e os escândalos da família presidencial tornaram-se prementes.
O Bolsonaro que surge desta metamorfose não é nada além de um reencontro com este passado. É um Bolsonaro 1.0, o “Bolsonaro Raiz”, o Bolsonaro da boquinha. Em todos os campos do seu governo, o que se vê é uma composição singular entre centrão e militares, desenvolvimentismo e obras regionais, foco no “Brasil profundo” e deterioração de imagem nas capitais. Bolsonaro se livra da roupa que vestiu para as eleições e retoma suas crenças profundamente pessoais para chegar ao fim de seu governo.
O sintoma mais nítido desta guinada é o desgastante processo de litígio com a ala olavista, grupo que conduziu a construção de sua imagem e deu o tom belicoso de seu primeiro ano e meio de governo. O guru da Virgínia descabela-se em praça pública, detonando a traição do presidente; seu principal estafeta, Allan dos Santos, tomou parte na briga e passou a denunciar as traições de Jair à causa que o elegeu. Nem mesmo o garoto prodígio da turma, Filipe Martins, parece confortável em sua posição: é especulada uma mudança para os Estados Unidos, onde poderá brincar de guerra cultural com seus amigos da Alt-Right.
Fim da “Nova Direita”
Tal divórcio representa também o fim da epopéia da nova direita, construção política e cultural iniciada nos anos 90 por Olavo e Carvalho e o Instituto Liberal. As premissas que deram base para este novo arranjo — a perspectiva conservadora do filósofo, a crítica ao aparelhamento da imprensa e da universidade, o profundo anti-petismo, a alternativa econômica liberal, a emulação dos modelos americanos — foi sendo deixada de lado por não apresentar, dentro de si, a solução política que lhe fizesse possível.
Impossibilitada de se converter em uma gama de políticas públicas e horizonte de governo, a nova direita tornou-se, com o tempo, mera bandeira propagandística, arremedo de causa convertida em meme. Candidatos identificam-se como “conservadores, cristãos e patriotas”, buscando única e exclusivamente uma vinculação superficial ao líder em questão. Aí, nessa hora, vale tudo: Roberto Jefferson vira herói nacional, Celso Russomano é alternativa, Crivella dá exemplo de decência. A vitalidade do setor, que ousou dominar o debate público nos últimos anos, se esvai. São tempos de derrota.
Existem articulistas e formadores de opinião dispostos a embarcar nesta cauda de cometa para se aproveitar do seu brilho final. Ainda dá pra espremer o bagaço da laranja. Mas, como disse, é fim de festa. A ressaca política para 2021 vem brava — e as eleições municipais parecem antecipar isso. O humor do mercado, outrora governista, virou. E as contradições políticas, como avalanche, levam o que resta de esperança no seio da classe média.
O surgimento do Bolsonaro 1.0 não é o princípio de algo novo; é apenas sintoma de algo velho. A crise do pacto político de 1988 continua de pé. É neste cenário desolador, Pantanal incendiado de ilusões políticas, que o brasileiro se encaminha nesta metade final de governo. É triste.