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Renan Santos

Renan Santos

As lições sobre mercenários deveriam ser lidas pelo presidente

Bolsonaro não leu Maquiavel…

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Está consumado. Arthur Lira, o honradíssimo Arthur Lira, é o próximo presidente da Câmara dos Deputados. De tão digno, é incapaz de atender a linha sucessória; está deputado por liminar, posto que ficha suja. Lira é retrato do Brasil que supostamente acabou nas eleições de 2018. “A mamata acabou”, dizia Bolsonaro. A mamata vicejou, percebeu Lira.

Lira comprou a todos com o cheque em branco da presidência. Onde havia um deputado, havia uma proposta. Quer emenda? Lira tem. Quer uma “mão amiga” de Augusto Aras? Lira providencia. Quer obra — tocada pelo “eficiente Tarcísio”? Lira arranja. O condenado prometeu tanto que comprou até a base do adversário. Baleia terminou pescado pelo seu arpão. Levou sardinhas do baixo clero e até traíras da oposição de esquerda. Tem peixada no Planalto.

O comprometimento da presidência foi tão grande que até seus pelegos foram mobilizados. A sempre caricata Carla Zambelli movimentou seu ‘Nas Ruas’ em apoio a Lira; eram antes “Lava Jato”, são agora “Leva Tudo”. De tão emocionada, organizou uma recepção no aeroporto de Brasília. Com faixas e apitos, gritavam que “Lira é Bolsonaro!”, coisa de profissional. Parecia a CUT, não fosse o amarelo.

Bolsonaro se mobiliza pois quem tem Flávio, tem medo. As manifestações públicas de apoio reformista de Guedes, o coxo, são mera desculpa que turvam o essencial: Bolsonaro tem medo de cair. Lira diz que segura o impeachment. Promete auxílio — e estoura teto. Diz que está com Bolsonaro, enquanto o entulha com promessas irrealizáveis. Bolsonaro tem dívidas a pagar com Centrão. Dívidas tomadas em nome de Arthur Lira.

O presidente caiu na mão do mercenário pois rejeitou a hipótese preferencial de construção de base — a montagem de seu “exército nacional”. Sem aliados reais, governa através do medo com seus escravos — Zambellis, Barros e Bibos —, e na base do escambo com Liras e Waldemares. A história é pródiga em atestar o fracasso de tal modelo. Vamos então ao especialista no tema, o florentino Nicolau Maquiavel:

“Direi, portanto, que as forças com as quais um príncipe conserva o seu Estado são próprias ou mercenárias, auxiliares ou mistas. As mercenárias e auxiliares são inúteis e perigosas. Tendo alguém o seu Estado firmado em tal espécie de forças jamais estará seguro; elas não são ligadas ao príncipe, são ambiciosas, faltas de disciplina, infiéis, insolentes para com os amigos, mas acovardam-se diante dos inimigos, não têm temor de Deus, nem fazem fé nos homens, e o príncipe apenas retarda a própria ruína na medida em que retarda o ataque. Deste modo, o Estado é espoliado por elas na paz, e durante a guerra pelos inimigos”.

Eis o pensador italiano trazendo para Bolsonaro — capitão do exército — o mais prosaico de seus conselhos. Parece que o militar não é muito afeito ao básico da estratégia, ou decerto conheceria as máximas do florentino. Maquiavel é claro ao atestar o fracasso dos reinos que se mantinham à base daquilo que sustenta o presidente, ou seja, mercenários:

“Roma e Esparta foram durante muitos séculos armadas e livres. Os suíços são armadíssimos e libérrimos. Das armas mercenárias antigas, podemos citar como exemplo os cartagineses, os quais quase foram oprimidos por seus soldados mercenários, ao fim da primeira guerra com os romanos, a despeito de terem por chefes os próprios cidadãos de Cartago. Filipe da Macedônia foi pelos tebanos feito capitão de sua gente, depois da morte de Epaminondas, e após a vitória lhes tolheu a liberdade. Os milaneses, morto o Duque Felipe, assalariaram Francisco Sforza para combater os venezianos e o mesmo, vencidos os inimigos em Caravaggio, a estes se uniu para oprimir os milaneses, seus patrões. Sforza, seu pai, estando a serviço da Rainha Joana de Nápoles, deixou-a repentinamente desarmada; por isso ela, para não perder o reino, foi obrigada a lançar-se aos braços do Rei de Aragão.”

Tendo em vista a triste eleição ao comando do parlamento brasileiro, Jair Bolsonaro bem poderia ouvir os conselhos do pensador. Fiar-se na lealdade de Arthur Lira, notório vendedor de apoio, é caminho para servidão no governo federal. O progressista cumpre seu papel de vencedor na eleição para o comando da casa; o fez, porém, com talão de cheque em mãos, prometendo emendas e cargos. Se Jair não cumprir — algo provável, tendo em vista seu histórico e situação fiscal — as tropas de Lira, venais como ele, se insurgirão. É questão de tempo.

Na verdade, como demonstra Maquiavel, até no êxito Bolsonaro sofrerá. Lira não tem a aura de um Filipe da Macedônia, mas pode seguir seu exemplo e aumentar seu cacife após o êxito sobre Baleia. Um eventual pedido de impeachment contra Bolsonaro, aceito por Maia, apenas fortalece a posição do presidente da Câmara. E outros que se avolumam sobre sua mesa — com ou sem aceite de Maia — também melhoram seu status na relação. Lira, Waldemar e o seleto time de soldados do Centrão são especialistas na matéria. Foi assim com Temer, com fama de cumpridor e distribuidor de ministérios; imagine com Jair, considerado desonrado e instável.

Lira, enquanto mercenário, opera para garantir seus pagamentos. Vê-se como vencedor na loteria, pois tem o governo como refém. Extrairá dele — salvo eventual lapso de republicanismo — tudo o que for capaz de obter, especialmente nos momentos de fragilidade. Terá, nesse sentido, a oposição ao presidente como grande aliada. Será nesse jogo dúbio que fará poder. Por que haveria de ser diferente?

É num governo de militares, estrategistas por excelência, que Maquiavel enxerga do túmulo, rindo de canto, a não observância de todas suas máximas que revolucionaram as ciências políticas no ocidente. Jair comemora o exército de mercenários pois, quando teve a chance de construir o seu, optou por sabotar qualquer caminho político. Paranóico e desconfiado, só poderia incorrer no célebre erro: entregou-se aos abutres. A história, como bem demonstrado, joga contra o presidente. Não há razões que justifiquem um final feliz com um arranjo dessa natureza.

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