O mantra da renovação na política, que tantos de nós repetiram ao longo dos últimos anos, tem soado cada vez menos convincente. A julgar pelas pesquisas, nem a direita bolsonarista e a liberal nem a esquerda lulista e a cirandeira têm obtido os melhores resultados para as prefeituras das capitais. O centrão volta a dominar com sua máquina eleitoral, seus conchavos e a capilaridade de vereadores e lideranças de bairro da “velha política” - essa expressão equívoca que tornou-se anátema entre nossos bem ilustrados militantes.
O cenário revela alguns aparentes paradoxos. O primeiro é que não houve queda no uso das redes sociais. As pessoas continuam utilizando facebook, twitter, instagram e agora a nova bola da vez: o tiktok. Tiktokeiros e twitteiros são bolhas diferentes. Os primeiros, mais jovens e mais descolados; os segundos, jovens (pero no mucho), e politizados. Se todo mundo está usando as mesmas redes, o que aconteceu, então?
Uma olhadela nas cabeças das pesquisas atesta nossa tese: Eduardo Paes, Bruno Reis, Kalil, Russomano são alguns nomes presentes no topo de várias capitais importantes da federação. Abundam quadros da política old school, em legendas típicas como PSD, PSDB, PMDB, DEM; do mesmo modo, é bastante expressiva a presença de ex-prefeitos nesta lista, o que mostra a relevância de ter a caneta na mão na hora de tentar se eleger.
Creio que essa situação se explica em função da conjugação de fatores previsíveis e de outros menos evidentes. O mais óbvio deles é o domínio que hoje o centrão exerce sobre a política nacional. O centrão, bem representado em órgãos como Banco do Nordeste e DNOCS, é atualmente o esteio mais sólido do governo. Bolsonaro, por sua vez, decidiu não apoiar candidatos nas capitais. O bolsonarismo murchou. O que sobrou? Remanescentes da direita não-bolsonarista ou bolsonaristas correndo por fora, e a esquerda ainda aprendendo a usar as redes sociais de um jeito verdadeiramente efetivo.
Mas estão aprendendo. A liderança de Manuela D'Ávila em Porto Alegre e a ascensão de Guilherme Boulos em São Paulo exemplificam esse movimento. Sobre a primeira, apesar de ter um canal pequeno no YouTube (cerca de 50 mil assinantes), é sintomático que ela tenha um canal. Com linguagem jovial e didática nos seus vídeos, e projeção nacional bastante considerável, Manuela é a cara de uma esquerda jovem, atraente e, sobretudo, vendável.
O mesmo se pode dizer de Boulos. Uma das figuras mais “memísticas” da esquerda, Boulos foi candidato a presidente, apareceu em inúmeros grandes veículos e tem uma cobertura jornalística, para dizer o mínimo, muito “amigável” e exasperadamente constante, considerando que, apesar dos jornalistas eventualmente “se esquecerem”, ele não é o candidato único no pleito.
Poderíamos talvez apontar o enfraquecimento do PT nas capitais e vincular esse dado ao surgimento de uma esquerda alternativa, não-petista, que estaria tomando o lugar do PT. Acredito, porém, que esse juízo é precipitado e falha em pontos cruciais. O primeiro é que a esquerda não-petista, que se distanciou nitidamente do Partido dos Trabalhadores, é melhor representada pela REDE e pelo PDT. PCdoB e PSOL são muito mais próximos do PT do que esses outros partidos; especificamente, nestes dois partidos, Manuela, ex-vice de Fernando Haddad, e Boulos, historicamente ligado à liderança de Lula, estão entre os quadros mais próximos do PT, não entre os mais distantes. A boa performance deles não se justificaria, portanto, pelo surgimento de uma alternativa ao PT. A causa dela é outra.
Qual seria essa causa? Antes das generalizações, cumpre pensar nos dois perfis individuais. Um traço que os une é que Manuela e Boulos são candidatos que se nacionalizaram como figuras carismáticas com inserção no debate público operando nas redes sociais. É algo semelhante ao que ocorreu com Jean Wyllys e com o próprio Bolsonaro, esse último em escala colossal, no passado. Se o PT não está bem representado aí, é antes por um atraso tecnológico na modalidade de política petista, explicado pelo caráter obsoleto da sua burocracia central, e esse traço pode ser revertido com
O segundo fator que indica o peso da máquina eleitoral nesta eleição tem a ver com isso. Eleições municipais são, como é óbvio, municipalizadas. Mas o debate nas redes sociais é, principalmente, nacional, porque se trata de uma plataforma em que não há divisão por estados ou cidades.
A divisão imperante nas redes sociais é a da língua e da nacionalidade: pessoas dos mais diversos estados do Brasil discutem os mesmos problemas em português e referidos a uma instância geral: o país. Ou problemas mundiais, mas em português, o que dá o corte relevante na rede social. Esse corte não é municipal ou regional, ele é linguístico e nacionalizável ou mundializável em altíssimo grau.
Portanto, o debate regional que não se nacionaliza, estando fora das principais redes sociais, dificilmente projeta seus porta-vozes. Logo, as eleições municipais, em que esse debate é o cerne, não os projetam. Essa é a razão porque, mesmo na disputa por São Paulo ou por Porto Alegre, as redes sociais ajudam efetivamente as figuras já nacionais, sejam elas de esquerda ou de direita. E é a razão porque o impacto dessas redes será muito menor para a disputa nas cidades menores.
Há um outro fator relevante para explicar o cenário, e esse normalmente não é notado, ou quando percebido, não recebe a importância que merece. A dinâmica das redes, conforme demonstrado por Niall Ferguson em A Praça e a Torre, longe de ser democrática, é profundamente aristocrática. Ela é aristocrática num componente basilar: não são todas as pessoas que terão muito seguidores, nem algo próximo disso. O inverso ocorre: um número pequeno de influenciadores terão muitos seguidores. O gráfico da influência nas redes tem uma base extremamente larga e um pico no centro extremamente agudo e estreito.
A ampliação do uso das redes, e mesmo a ampliação da sua relevância política (duas coisas diferentes, como já vimos) não quebram essa dinâmica, mas a reforçam. Como acontece? Pensemos juntos.
Se mais pessoas usam as redes para política, isso não quer dizer necessariamente que elas seguirão mais gente ou terão um número cada vez mais variado de influenciadores, certo? Qual a tendência, então? A tendência, facilmente verificável pelo crescimento de perfis já bastante grandes, é que elas sigam, em maior número, os mesmos influenciadores e ainda que haja muito mais gente produzindo conteúdo, a quantidade deles que fura a bolha da irrelevância é pequena e tende a ser menor ao longo do tempo, já que há uma saturação progressiva de temas e ângulos e assuntos de interesse.
Simplesmente não é possível dividir, de forma mais ou menos “igualitária”, a atenção nas redes para candidatos, porque a competitividade nas redes é livre, sem amarras de domínio; a competitividade é abstrata e “pura”: um vereador de Ribeira do Pombal (Bahia) não disputa com um de Santo André (São Paulo), porque há uma divisão de estado e cidade estabelecida no mundo concreto. Mas dois influencers políticos de cada uma dessas cidades disputam entre si a atenção nacional, a não ser que eles se restrinjam a abordar temas muito locais, o que, em regra, não permite que se tornem realmente grandes, e portanto, não lhes permite decidir a eleição através disso, mesmo uma eleição municipal. Já os exemplos de domínio geral setorizado (um cara fortíssimo em Recife - e somente em Recife - com força de decidir uma eleição pela sua influência local) são raros e não perfazem sequer uma exceção, já que essa mesma dinâmica se reproduz no microssistema onde ele está inserido.
Esses são os motivos, in nuce, que impedem, hoje e para sempre, a transformação democratizadora da política pelas redes sociais. Para a direita brasileira, sem base social e sem dinheiro, essa miragem é especialmente fatal e poderá, no devido tempo, simplesmente extingui-la como o meteoro matou os dinossauros. Porque ao perseguir esse alvo, que é inalcançável, a direita pode deixar de fazer aquilo que realmente importa, estrategicamente: a formação da capilaridade política top-down, com as figuras marcantes nas redes sociais formando a pirâmide dos quadros de cima para baixo, onde as faixas intermediárias da pirâmide simplesmente não poderão em si e per si disputar nada neste modelo, mas podem, de modo derivado, serem beneficiados por ele (pelo que se faz em cima da pirâmide), deste modo sem poder depender diretamente da “mágica” das redes sociais. E por isso toda a estrutura do seu próprio discurso tem que ser modulada conforme este fator. Esse objetivo a esquerda está, mais do que nunca, habilitada a realizar em nossa frente, porque possui o preparo mental e a visão adequada de como conciliar o que ela já tem com aquilo que ela está descobrindo: as redes sociais.
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