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Picanha, Picanha, Picanha. Chegou a vez dela, a picanha, corte do traseiro bovino conhecido por sua suculência e pela espessa capa de gordura, que lhe confere sabor e consistência únicos. Picanha é artigo caro, distante da mesa do brasileiro, sorte de lagosta bovina tornada fetiche por conta de sua escassez. Picanha pode ser assada, grelhada ou defumada, variando conforme o gosto e habilidade do assador. Picanha é mais que carne. Picanha virou o centro de debate nacional.
A picanha bem passada pedida por Bolsonaro em Nova York passou batida pois, sejamos sinceros, ninguém liga pra picanha bem passada. O desrespeito aos símbolos nacionais é tamanho que o cidadão já ignora a morte inútil deste boi que foi torrado inábilmente num espeto. Faz parte, coisa da nova era. Motivo de piada, o presidente não comentou seu mau-gosto nas redes. Mas fica aqui o registro para seus viris e carnívoros seguidores: seu mito comete dessas.
Picanha também foi comprada em quantidades pantagruélicas pelas forças armadas brasileiras, visando abastecer os festejos dos homens do botão dourado. Num país destruído, festa não pode faltar, especialmente quando se vive de mamata. O brasileiro precisa bancar 700 mil quilos de picanha para que Mourão, Heleno e seus amigos se refastelem num domingo qualquer, inchados de sódio e gordura, louvando as glórias das batalhas que nunca lutaram. Não pode faltar picanha numa hora dessas. 700 toneladas de picanha. É boi que não cabe em mil Matos Grossos do Sul. É boi demais pra patriotismo de menos.
A picanha circula livremente nos palácios governamentais e no gosto pouco apurado dos nossos líderes e libertadores. O Bolsonaro que comeu picanha bem passada em Nova York também assou — sem a habilidade devida, presumo — um naco deste corte em churrascada oferecida no Planalto. A peça, advinda de um boi da raça Wagyu, caríssima, chega a custar módicos R$1.800,00 o quilo, e veio embalada a vácuo num adorável blister verde oliva com uma caricatura do presidente, fofo que é, fazendo arminha com cara de danado. Não sabemos se foi presente de um acólito ou se foi pago com o cartão corporativo mais caro da história. Bolsonaro é do povo, e o povo gosta de picanha. Bolsonaro come picanha por todos nós.
Bolsonaro, porém, não brilha sozinho no culto ao traseiro bovino. Se ele promete comer todas as picanhas em suas festas no planalto, seu suposto desafeto, Lula, promete recolocar a picanha “na mesa do povo”, conforme sustentado em 11 a cada 10 entrevistas dadas pelo petista. Em seu último vídeo, divulgado como profecia milagrosa por jornalistas e militantes, Lula falou que “pobre gosta de coisa boa”, algo que não duvido. Bolsonaro é rico e come picanha bem passada. Lula também questionou: “quem é que não gosta de uma picanha com uma pontinha de gordura bem assada?”. O líder nas pesquisas foca no essencial, ainda que tenha contemplado a costela e a alcatra em seu discurso. Aparentemente, aponta para novos caminhos. Seria uma inovação?
Lula gosta tanto de picanha que foi nos governos do seu partido que grandes patriotas ligados ao mundo da carne, como os irmãos Joesley, da JBS, cresceram e prosperaram. O sindicalista mirou na picanha popular, mas acertou num escândalo de corrupção com proporções dantescas. A picanha, para Lula, é instrumento de trabalho, elemento de convencimento, moeda de troca num jogo político intricado e voraz. O petista sabe que sua turma sempre foi enfática na hora de colocar uma gordurinha ( 20%? 30%) de sobrepreço em obras e equipamentos, e qual corte oferece isso de maneira tão visual, exposta, intensa, como a boa e velha picanha? Lula, assim como o brasileiro, gosta muito desse corte.
Não me espanta que as expectativas eleitorais para 2022 sejam simples e diretas: é tiro, porrada e picanha. Tudo muito distante dos sonhos ambiciosos de 2018 — enfrentamento ao sistema, reformas transformadoras, mudanças profundas na gestão do estado brasileiro. A partir de 2013, o povo foi às ruas e prometeu de lá não sair até que o Brasil, finalmente, se tornasse o país que tanto sonhou. Para tanto, fez sacrifícios, encarou crise econômica, viu sua família se dividir por conta de brigas políticas infindáveis. Os churrascos de domingo nunca mais foram os mesmos, até porque, além dos convivas, a carne também começou a faltar.
Lula, oportunista, enxerga uma oportunidade e promete picanha para o cidadão aflito; Bolsonaro, por seu turno, come a picanha e oferece voto impresso. O primeiro lidera as pesquisas com mais que o dobro das intenções do segundo. Ele sabe que vivemos a política das picanhas, o Make Churrasco Great Again. Para muitos, soa tentador abandonar essa briga toda e se embriagar com cerveja e carne num eterno final de semana brasileiro, deliciosamente quente e alienante como tudo que é bom por aqui. Lula gosta. Vai sobrar muita pontinha de gordura pra ele e seus aliados.