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Bolsonaro não gosta de usar máscaras. Natural. Eu também não gosto. Máscaras podem ser apertadas, machucam as orelhas, deixam a respiração abafada. Você não consegue se fazer entendido, pois sua boca fica permanentemente tapada. Eu odeio usar máscaras. O Bolsonaro também. Mas eu uso.
Uso não por ser um herói ou por querer “salvar vidas”, como dizem os atores da globo. Nada disso. Uso pois já tive COVID e foi um inferno. As dores de cabeça eram constantes, tive problemas para dormir e o uso de tantos remédios quase me fez desmaiar, me obrigando a ir ao hospital. Uso pois fico constrangido de, potencialmente, contaminar uma pessoa de boa-fé que estiver perto de mim. Não quero salvar a humanidade, mero ente abstrato. Quero salvar minha avó, meu amigo, o motorista do Uber. Só isso. Não tenho muitas ambições humanitárias.
Bolsonaro também não tem ambições humanitárias. Aparentemente, temos algo em comum. Difere nossa situação, além do super-salário, a super-responsabilidade de ser um presidente da República. Por mais que Bolsonaro não goste, presidentes da República precisam ter ambições humanitárias. É sua obrigação, de acordo com a Constituição Federal, a começar pelo Caput do Art. 5o:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Para os mais desavisados, podemos citar o Art.196 da mesma Carta Magna, que versa sobre o dever do estado brasileiro com a saúde do próprio povo:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Bolsonaro não precisa gostar de outras pessoas, ele só precisa cumprir a lei. Cumpre a lei, usa a máscara, não aglomera, compra a vacina e jogo que segue. Este é o padrão de comportamento de praticamente todos os líderes políticos do mundo livre. Mas não é o comportamento de Bolsonaro. Além de não ter ambições humanitárias, Bolsonaro não gosta de cumprir a lei.
“Entendi Renan, mas ele acha a lei injusta”. Ok. Entendi. Ele poderia promover suas posições exóticas através de projetos de lei, ou mesmo de decretos, talvez soando meio besta para o cidadão comum. Mas isso, vá lá, seria jogar com as regras do jogo, mesmo o jogo sendo meio ridículo. Suas proposições seriam provavelmente barradas, pois atentariam contra os artigos da Constituição já citados. O legislativo não levaria à frente, tampouco o STF permitiria. Não seria uma boa ideia.
Bolsonaro não tem boas ideias. Já que não pode eliminar o direito à vida, ele ignora o que está na lei. “Mas isso é crime”, você deve estar pensando. E é. Entretanto, Bolsonaro descobriu que seus crimes compensam, pois nada acontece. Pedidos de impeachment são ignorados, investigações são destruídas. O mesmo ministério público que queria a prisão de Temer por conta de uma delação manipulada finge que o presidente não existe após Bolsonaro chegar ao poder. O legislativo está comprado, e o STF atura o presidente pois ele opera pela impunidade ampla, geral e irrestrita — a começar por seu filho Flávio e o ex-presidente Lula.
Jair, portanto, sente-se confortável pra ser Bolsonaro, e não o presidente. Trocando em miúdos, ele não precisa ter ambições humanitárias e não precisa cumprir a lei. Países atrasados geralmente vivem essa confusão entre o público — jurisdição do presidente — e o privado, jurisdição do indivíduo. Em países assim, o público pertence ao privado e o privado faz o que quer pois, enfim, se você é o dono, quem fará algo contra você?
A essa confusão damos o nome de patrimonialismo, e veja só!, muitos livros foram escritos sobre o tema. Para citar alguns, temos o já clássico “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, e “Os Donos do Poder”, de Raimundo Faoro. Estas obras abordam o caráter clientelista dos agentes políticos brasileiros, e as relações de poder construídas ao longo de séculos para manter os privilégios da classe dirigente.
Bolsonaro gosta dos próprios privilégios, a julgar por seus votos quando deputado. Sempre foi favorável ao aumento de salários de parlamentares, e enquanto presidente usa e abusa de tudo a que tem (ou não) direito. No último domingo, por exemplo, mobilizou milhares de policiais, helicópteros e equipamentos públicos para passear de moto com seguidores políticos. Não havia interesse público no passeio; havia apenas interesse privado. E interesse privado bancado com recursos públicos. É ilegal? É. Mas tal qual seus crimes contra a vida, também passará impune.
Bolsonaro e outros líderes patrimonialistas só respeitam a lei quando suas jurisdições públicas e privadas se encerram. Isso quer dizer que ele não precisa usar máscaras nem ostentar ambições humanitárias por aqui, mas que fará o contrário caso esteja em outros países. É por isso ele e seus filhos enxergam com naturalidade essa incoerência.
Para eles, não há incoerência alguma. Em casa — e eles enxergam o país como sua casa — eles podem andar do jeito que bem entenderem. O presidente pode usar uniformes de futebol para comparecer em eventos públicos. Pode ignorar máscaras, promover aglomerações, usar a polícia federal para comícios eleitorais. Fora de casa, porém, as regras são outras, e eles as obedecem. Nessas horas, sentem-se homens de bem, cidadãos do mundo. São caipiras passeando em Miami.
É por isso que horas após colocar milhares de brasileiros em risco, Bolsonaro usa máscaras e respeita as leis — no Equador. E não o faz por conta de ambições humanitárias (ele não parece ligar muito para o povo do Equador). Ele o faz, simplesmente, pois precisa cumprir a lei. Ele sabe que mesmo uma república das bananas, como o Equador, pode exigir dele algo mais que toda a República brasileira. E isso, pra malandro, é problema. Malandro nessas horas fica pianinho.
Pois se malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem. Eis o mantra do presidente e seus filhos enquanto viajam pelo mundo com nosso dinheiro.