Estamos flertando com o abismo. O país do SUS precarizado, da falta de leitos e dos pacientes nos corredores prepara-se para enfrentar o vírus que colocou de joelhos as grandes potências.
A China, com capacidade de investimento e o poder de repressão que só uma ditadura é capaz de conferir, brecou o avanço do vírus — mas a que preço? A economia mundial se debate, em febre, enquanto fábricas suspendem suas atividades, companhias aéreas vão à falência e cidades se transformam em cemitérios.
Grandes potências asiáticas conseguem conter a curva de disseminação à base de muito planejamento e colaboração. Destacam-se Taiwan, Singapura e Coréia do Sul e suas políticas de quarentena e testes frenéticos — funcionais, também, por conta do clima de união nacional inspirado por médicos, imprensa e líderes políticos.
No ocidente — terra da liberdade — assistimos um drama diferente. A Itália ,que minimizou os impactos do COVID-19, paga com sangue o preço da irresponsabilidade. Além do recorde de casos diários, o país vive o drama da falta de leitos e equipamentos para tantos doentes. A quarentena recém instalada promete diminuir a contaminação; ainda assim, a reação foi tardia a ponto de parar o país.
Os líderes da Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos diferem na abordagem, mas jamais na gravidade do problema. Angela Merkel adotou todas as medidas possíveis — do fechamento de fronteiras ao isolamento total de suspeitos; Donald Trump decretou estado de emergência nacional e promete investimento multibilionário no combate ao avanço da doença. E Boris Johnson, ainda que apostando em tese polêmica, mobiliza a indústria inglesa a produzir como em tempos de guerra.
E o Brasil? Ah, o Brasil! Somos o país em que o presidente da república ignora o problema e dá de ombros para as recomendações internacionais. O mundo todo adota medidas de combate ao vírus desde janeiro; estamos em março e o presidente nos diz, em cadeia nacional, que é errado cancelar partidas de futebol. Diz que é “histeria”.
Bolsonaro só pensa na própria pele. Antes da coronacrise eclodir, já colocava seu ministro da economia em xeque. Frustrado com o crescimento que não veio — e não virá — já começa a exercitar o cálculo político dos demagogos a cada ação que toma. O filtro presidencial para reformas como a tributária e administrativa passa a ser a urna de 2022. Guedes se frustra — tem prazo para apresentar resultados — e perde o status de superministro.
Ao longo da última semana, o presidente dobrou, triplicou a aposta. Através do General Heleno, convocou manifestações. Contra o congresso. Seus influenciadores nas redes, com trânsito livre no Planalto, falaram abertamente em AI-5, “entregar o poder ao povo”, intervenção militar. Ataques contra os demais poderes foram orquestrados pela família presidencial. Denunciavam uma “sabotagem", veja só!, posto que o congresso “não andava com as reformas”. E qual é minha surpresa quando atesto que reforma alguma foi encaminhada ao congresso?
Bolsonaro aponta culpados para mascarar a própria incompetência. Comporta-se, assim, como chefe de facção — líder jamais — ao invés de presidente da república. Seu objeto de adoração, Donald Trump, procura colaboração com Nancy Pelosi, presidente da Câmara e sua maior adversária; Jair, por aqui, se deixa fotografar com cartazes pedindo a cabeça de Rodrigo Maia e o desafia, em rede nacional, a sair pelas ruas em campeonato de popularidade.
Eis o líder que temos diante do drama que se desfralda diante de todos nós: um menino mimado, birrento, personalista e irresponsável. Um homem cuja pequenez se reflete em todos seus atos, milimetricamente calculados por seus filhos para atiçar a militância.
Como produto de marketing, Bolsonaro emula um homem comum na presidência. Toma decisões como um taxista, trata de temas polêmicos como um ébrio, faz pronunciamentos oficiais como torcedor organizado. Acredita — vestindo-se de povo — que assim maximiza a ficção autoritária de que ele, e apenas ele, representa a essência do homem brasileiro. Se esquece que num momento de crise não precisamos de simulacros de homens comuns, mas de líderes de verdade.
E percebam, isto é excepcionalmente bizarro: nas crises, homens comuns tentam se travestir de falsos líderes; Bolsonaro, falso líder, tenta se travestir de homem comum.
Suas manifestações públicas, cada vez menores, fazem corar até o mais pelego dos petistas. São adesistas, submissas, obscurantistas e irrelevantes. O povo ali presente —idosos ressentidos, vasta maioria — apresenta-se como exército de Jair, faz juras de amor, promete encerrar os demais poderes. Caminhões de som bancados por políticos prometem uma revolução que não virá. E minimizam os efeitos do coronavírus com ares de terraplanista.
Os atos de ontem deixaram inequívoca sua vocação golpista. Ronaldo Caiado foi expulso da manifestação em Goiânia por homens e mulheres ostentando faixas de intervenção militar. Sintomático e representativo. Seu erro foi sair a público para denunciar os perigos de uma aglomeração em tempos de coronavírus. Como político governista, era aplaudido; quando convertido em médico, repudiado. Sinal das prioridades para os patriotas em marcha ali presentes.
A insensatez custará caro. O Brasil só atentará para o Corona quando o vírus começar a vitimar seus cidadãos. Até lá, irá dar de ombros, viver de narrativas, mitar em redes sociais. Enquanto os poucos respiradores da rede privada de saúde atenderem nossas elites, o pânico será mitigado. Mas o Corona chegará ao SUS. Chegará aos mais pobres e necessitados. E aí, diante de uma crise social e política iminente, veremos os verdadeiros resultados deste festival de irresponsabilidade.
Até lá, que possamos rir e vibrar com nosso anti-líder. O palhaço nacional, em ritmo de festa, embala o desastre que se avizinha.
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