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A tão aguardada metamorfose, processo em que Bolsonaro abandonaria as classes médias que lhe elegeram, em prol de um público mais pobre (e acrítico) chegou ao seu clímax. Os sinais estavam em todos os cantos: o discurso vazio sobre o "povo no poder", o aparelhamento do governo pelo centrão, as esperanças no coronavoucher. Passo a passo, Bolsonaro abandona a máscara que se utilizou nas eleições, numa “troca de pele” — parafraseando Carlos Andreazza — que será lida como traição por boa parte de seus eleitores.
O estranhamento ficará mais claro quando colocarmos, lado a lado, o processo de derretimento de Bolsonaro com a deterioração política de Lula ao longo de seu primeiro mandato. Assustam as coincidências, ainda que não surpreenda que tanto o petista quanto seu irmão de populismo adotem, ao fim, práticas tão similares.
De início, é preciso compreender: tanto Lula quanto Bolsonaro se elegeram como outsiders, figuras de “fora do sistema” que pretendiam representar o “povo" numa Brasília distante de seus anseios. Chega a ser estranho: que povo é esse que pode se identificar tanto com Lula quanto com Bolsonaro, homens de perfil (e temperamento) tão diferentes?
A premissa de ambos é válida. Tanto Jair quanto Luís Inácio apresentam, em certa medida, aspectos importantes do homem brasileiro. Mais: julgo que, cada um a sua maneira, representam traços diferentes — e até complementares — da alma do nosso povo. Lula traz em si algo de simpático, vadio, malandro, porém cuidador; Jair traz outra sorte de malandragem, a do espírito do funcionário público, do brasileiro de classe média que reclama de tudo. São irmãos em vícios divergentes.
A ascensão de ambos ao poder deu-se por eleições concorridas, vencidas no segundo turno. Foram celebradas pelos seus como mito fundador de uma nova ordem. Para Lula, “nunca dantes na história desse país” um homem do povo chegou ao poder; para Bolsonaro, pela primeira vez os “valores do homem comum” seriam representados em Brasília. Dotados de tamanha audácia, pretenderam construir seus governos sem a influência nefasta do dito “establishment" que juraram combater. Basta comparar os ministeriados: tanto Lula quanto Jair optaram por “times de estrelas” de seus respectivos campos políticos, sem concessões para a dita base aliada.
Nota-se aí a influência em ambos do pensamento de Raymundo Faoro, autor de “Os donos do Poder” e sistematizador da tese de que o “estamento burocrático”, força política que opera dentro do Estado em benefício de sua própria manutenção, é elemento central no atraso brasileiro. Olavo de Carvalho, oriundo da esquerda, adaptou Faoro para a rebelião bolsonarista; na prática, ele e sua nêmesis vermelha ascenderam ao poder denunciando os mesmos males.
Tão logo chegaram ao poder, Jair e Lula trombaram com o drama da governabilidade. Incapazes de operar tão somente com carisma, desgastaram-se lentamente até que um escândalo — mensalão para Lula, rachadinha para Bolsonaro — obrigasse os homens do povo a se compor com o sistema. Não sem luta: ambos denunciaram as ameaças de impeachment como “golpe" e prometeram colocar “o povo na rua” em resposta aos “avanços do sistema”.
As ameaças, em grande medida, eram vazias. Lula entregou seu governo ao centrão, lançou o Bolsa-Família e firmou base eleitoral entre os mais pobres, enquanto sangrava na classe média. Bolsonaro entregou seu governo ao centrão, lançou o “coronavoucher” e tenta firmar base eleitoral entre os mais pobres, enquanto sangra na classe média. As coincidências não são poucas.
É importante salientar que ambos tinham seus esqueletos no armário. O PT de Lula tornou-se pródigo em aplicar "mensalinhos" em suas gestões no grande ABC; Celso Daniel morreu em circunstâncias ainda não explicadas, mas diretamente ligadas aos esquemas do partido na região. Bolsonaro, por seu turno, sempre foi um patrimonialista de baixo clero, com conexões das mais estranhas com milícias suburbanas no Rio de Janeiro. Seus discursos de “faxina ética” e “combate à corrupção” nunca foram algo além de… discurso.
Lula e Bolsonaro tem seus exércitos particulares. O Exército vermelho, lulista, ficou famoso por receber mortadela e serem pelegos sindicais. O Exército verde e amarelo, Bolsonarista, hoje se reduz a pelegos de gabinetes e formadores de opinião que não recebem mortadela, mas ganham em like e views pela tarefa inglória de defender o indefensável. Os chefes dos exércitos são oportunistas, mas a massa miúda que eles comandam acredita em seus deuses; essa massa de apoiadores, que cercando Curitiba para impedir a prisão de um ladrão ou gritando por AI-5 por um "mito" de papel demonstram serem irmãs no fanatismo e no desapreço à democracia. STF sob o Foro de São Paulo ou Moro treinado pela CIA, qual a história lunática da vez você prefere?
Mas a perda do sonho, o significado real de sua eleição, se faz sentida com mais ênfase por Bolsonaro. Lula possuía apoio na classe média, mas seu horizonte incluía a emancipação dos mais pobres — ao menos enquanto discurso. Não é o caso do atual presidente: seu horizonte sempre foi o da desforra, o da vingança. Como não é capaz de entregar o prometido, a mera repetição do estratagema petista soa desajeitado. O Bolsonaro que abraça nordestinos pobres é o mesmo que chamava de “Bolsa-Farelo” o benefício inaugurado por Lula. Vai funcionar? Difícil dizer.
Lula criou uma operação estável com cifras bilionárias envolvendo obras, cooptação e superfaturamento. Era um modelo sólido, impossível de se conciliar com a retórica revolucionária de outrora. Baseava-se em entregas, números, resultados. Falhou posto que seus pressupostos — aumento de gastos públicos e corrupção desenfreada — eram insustentáveis. Mas enganou por bastante tempo.
Bolsonaro caminha na mesma direção. Mas suspeito, aqui com meus botões, que não encontrará a bonança de seu gêmeo à esquerda. Além do coronavírus, elementos do dito sistema — imprensa, STF, sociedade civil organizada — estão em guerra contra sua gestão. Guedes, seu ministro da economia, ganhou fama de falador. Uma cultura anti-corrupção não permite uma aventura como a de Lula. Os pressupostos para a contraparte conservadora ao populismo de Lula não estão sólidos como se imaginava.
É mais provável que o Bolsopetismo dure pouco. Bolsonaro, enfim, não é Lula, e nem Lula, hoje, conseguiria a mesma proeza. Resta porém, a lição: os projetos anti-sistema, no Brasil, terminam na vala comum do assistencialismo, compra de apoio e retórica golpista pra sustentar a militância. É pouco demais para desafiar um sistema político que de fato é injusto e precisa, urgentemente, ser superado.