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Nos últimos dias assistimos, não atônitos, porém consternados, ao ápice da devastação de uma epidemia que se instalou entre nós.
Há um ano atrás começava a nossa desolação. Na crise que nos abateu, tentativas de contê-la, provenientes do poder público, começaram a aparecer aqui e ali, geralmente falhas, às vezes agravando o problema, às vezes aliviando-o apenas temporariamente. Um consenso existia, contudo: a doença era grave e a humanidade teria de remodelar, ainda que por um período indefinidamente longo, as relações de sociabilidade e de trabalho.
Havia, entretanto, um homem que não parecia especialmente preocupado nem pelos mortos diários, nem pela disseminação da doença, nem pelas famílias desfeitas. Todas as falas deste homem denotavam desprezo por tudo o que parecia merecer ser preservado. E se lembramos neste modesto artigo das suas falas não é por gostar de revolver a lama. É que temos o dever de cobrar aqueles que têm responsabilidade e estão no poder para serem cobrados.
“O brasileiro tem de ser estudado, não pega nada. O cara pula em esgoto, sai, mergulha e não acontece nada.”
Para as primeiras mortes pela covid, a solução desse homem era o banho de esgoto.
“Parece que está começando a ir embora essa questão do vírus”, disse um pouco depois, em abril do ano passado.
Para as primeiras mortes pela covid, a solução era aguardar que a doença naturalmente fosse embora. Basta esperar e quem espera sempre alcança.
“A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo.”
Para as já dezenas de milhares de mortes pela covid, o homem lamenta, mas não muito, já que a morte é o destino comum de todas as pessoas.
“Lamento as mortes. Morre gente todos os dias de uma série de causas. É a vida, é a vida.”
Para as dezenas de milhares de mortes pela covid, o homem lamenta, mas novamente, não lamenta demais, pois, afinal, a morte é o destino de todos. Assim é viver. Um dia vivemos, no outro estamos mortos. Que se há de fazer?
“É como uma chuva, vai atingir você”
A Covid é uma chuva, caros leitores, e como diz o ditado: quem está na chuva é pra se molhar.
“Vocês não entraram naquela conversinha mole de ficar em casa e a economia a gente vê depois. Isso é para os fracos”
Já ultrapassadas cem mil mortes, a conversinha de ficar em casa é coisa de fracotes. Gente forte sai de casa, pega covid e mata no peito, não sem antes tomar um banho de esgoto para espantar os germes da covardia.
“Quem esperava? Depois de meses difíceis, chegarmos a uma situação de quase normalidade, ainda em 2020”
Rondando a casa de 200 mil mortes provenientes de uma única doença (3 vezes o número total de homicídios), a situação do Brasil era de quase normalidade. Nada a se preocupar.
Bem sei que muitos leitores da Gazeta do Povo admiram a pessoa que proferiu todas essas falas. São inesgotáveis os recursos que a mente pode criar para defender as suas crenças mais arraigadas. Uns dirão que ele disse isso tudo, mas se esforçou como ninguém para solucionar a crise, sabotado que foi pelos maus governadores. Alguns repetirão as mesmas escusas de sempre: há muito exagero da mídia, as pessoas não estão morrendo de covid mas de outras doenças; há outros lugares que não estão bem; o caso do Brasil não é o pior; vacina não adianta nada…
Para estes, a última frase:
“O Brasil está quebrado. Eu não consigo fazer nada”
De todas as declarações que listei aqui, essa é a primeira em que ele fala a verdade. “Eu não consigo fazer nada.” É verdade, mas não era preciso dizer; nós já sabíamos.