Ouça este conteúdo
As eleições já começaram e só não faz campanha quem não quer ganhar. O presidente da República, Jair Bolsonaro, não abandona o palanque desde sua vitória em outubro de 2018. Lula faria o mesmo, não estivesse na cadeia. Agora liberto, absolvido e cheio de si, não lhe resta nada além de lutar pelo poder, ideia fixa que nutre desde seus tempos de sindicalista. E trabalha, muito, para que isso aconteça com a tranquilidade de um passeio no parque.
O petista respira campanha. Reacomodou as forças dispersas do PT e firmou-se como líder do bloco de políticos difusos, espalhados entre MDB, PP, PR e PSDB, a desafiar o fenômeno Lava Jato e reescrever a história recente do Brasil junto ao STF. Se Cunha hoje respira, se Cabral nutre esperanças, é por que Lula — auxiliado por Bolsonaro e seu filho encrencado — liderou o processo de desmoralização da operação e conduziu, com a imprensa a tiracolo, a reabilitação da velha elite apeada do poder nos últimos 7 anos.
Este é um ativo pouco desprezível que não foi abordado com o devido cuidado pelos analistas políticos país afora. Lula fez o que Temer não conseguiu. Legitimou-se, portanto, como voz ativa e alternativa perante as mesmas forças do mainstream político que participaram do impeachment de Dilma Rousseff. É junto a eles que aparece, altaneiro, como proponente de um “pacto” para restabelecer a ordem perdida nos anos de rua e fogo que sucederam 2013.
Tal pacto, promessa de pacificação, é mero repeteco da aliança por governabilidade firmada em 2006, após o mensalão, que trouxe para Lula os grandes partidos e boa parte do empresariado — setores do mercado financeiro inclusive. Sob nova roupagem, promete devolver ao país a “normalidade” e o caminho do respeito externo e desenvolvimento econômico perdidos, em grande medida, no governo Bolsonaro.
Tal estratégia, uma espécie de retorno ao “velho normal”, beneficia Lula sobremaneira nesse jogo viciado que encontra em Bolsonaro uma nêmesis enfraquecida e nos nomes da terceira via uma massa amorfa e sem discurso. Enquanto tucanos e democratas pregam “experiência”, “governabilidade” e “parcimônia”, Lula apresenta números e dados dos seus governos. Enquanto seus adversários constroem a alternativa como discurso, Lula se apresenta como fato dado. É ele a ocupar o papel pleiteado pelos partidos da terceira via. Só eles não perceberam.
Auxilia Lula sua base eleitoral na região nordeste, que lhe permite largar com, no mínimo, 20% dos votos, não importa o discurso que sustente. Sua guinada ao centro não abalará, sequer minimamente, a fé quase cega que esses eleitores depositam em sua liderança, ainda mais após a decepção recente — captada pelos institutos de pesquisa — com o auxílio emergencial de Bolsonaro, dado e tirado como doce na boca de criança. Eleitorado acrítico, não está preocupado com as voltas que Lula dá para chegar ao Planalto. O que importa, para eles, é Lula vencer.
De posse de tal eleitor, Lula tem os meios de ação para atrair as máquinas partidárias no Nordeste, do PSB ao PP, desidratando Bolsonaro e reforçando seu discurso de caminho ao centro. As negociações, conforme sabido, já estão em andamento. Será com esta base ampla que ostentará às lideranças empresariais e midiáticas do centro-sul a cara lavada de moderado e pacificador, distante dos radicalismos de outrora.
O radicalismo e a militância serão terceirizados. Conforme atestamos nas declarações de Guilherme Boulos e na militância de Felipe Neto, o ex-presidente constrói uma arrojada aliança junto ao PSOL nos centros urbanos, outra novidade ainda não captada pela análise preguiçosa de boa parte do jornalismo brasileiro. Robustecido pelo desempenho eleitoral de 2020, o partido de Freixo e cia irá abandonar, pela primeira vez desde 2006, a ideia de candidatura presidencial para abocanhar o apoio do PT às suas candidaturas estaduais em 22.
O efeito pretendido — já provado vitorioso no ano passado — é turbinar o desempenho do ex-presidiário em regiões tradicionalmente avessas ao petismo, especialmente entre jovens e mulheres, através do discurso mais moderno do PSOL. Os arcaísmos do discurso sindical e os escândalos de corrupção ficam para trás, enquanto a marcha dos transsexuais, entregadores antifascistas e feministas alucinadas toma as urnas dos grandes centros.
O estratagema, como um todo, ajuda a resolver uma das grandes limitações eleitorais dos petistas: a polarização óbvia entre nordeste e sul, pobres e classe média. Mas não é bala de prata, como alguns imaginam. A rejeição de Lula continua enorme, e apenas doses cavalares de erros e auto-sabotagens bolsonaristas são capazes de torná-lo palatável para aqueles que ainda o rejeitam. Faz-se mister, para Lula, enfrentar Bolsonaro no segundo turno. Eis aí a parte final de sua estratégia.
Esqueçam a ideia de um candidato único na terceira via. Não haverá. Os “partidos do centro” já acertaram com Lula seu papel eleitoral no jogo vindouro. Congestionarão o caminho do centro, permitindo ao moribundo Bolsonaro um ingresso claudicante no segundo turno. O PSD de Kassab já declarou oficialmente que terá candidato. “Derrotados” — mas fortalecidos no parlamento —, unir-se-ão a Lula no segundo turno, em nome da democracia, dos cargos e dos ministérios.