Bolsonaro entrou na tenda, se sentou no banquinho e aguardou pacientemente a chegada do churrasqueiro. Estava vestindo um conjunto preto com botina de boiadeiro, inspirando um clima de vingador brejeiro que cultiva à exaustão. Quando o churrasqueiro chegou, a surpresa: não trazia apenas as tulipas de frango assado, grelhadas junto à tenda. Vinha na bandeja, também, um punhado de farinha de mandioca, daquelas coloridas com corante, industrializadas, para dar o “arremate” na iguaria.
Bolsonaro arregalou os olhos, e, aparvalhado, começou a remexer a comida tal qual um cachorro revira o lixo. Após escolher o pedaço de frango, agitou ele no monte de farinha e levou a mistura à boca, desajeitado, deixando que as microbolinhas de mandioca caíssem sobre sua coxa e no chão. O presidente pouco ligou. Abocanhou outros pedaços, se sujando ainda mais. Parecia um idiota. Os assessores achavam tudo aquilo lindo, encantados com a espontaneidade do mandatário. Seu ministro da comunicação, o lulista Fábio Faria, de tão empolgado não se conteve: filmou o momento mágico e publicou nas redes, certeiro de que a comilança mostraria ao país a simplicidade do seu humilde chefe.
Havia lógica na tentativa de Faria. Existe no bolsonarismo o entendimento de que o presidente é uma espécie de encarnação da alma do homem comum, devendo seus atos, portanto, serem representativos de suas maneiras e costumes. Bolsonaro pode falar palavrões, quebrar o rigor e se vestir como um idiota pois o homem comum assim o faria. Pode ofender gays, pois o homem comum também o faz; tem uma fé cristã forçada, pra inglês ver, como o marido adúltero que sai do bar direto para a missa de domingo.
Nessa lógica, toda vez que o presidente “quebra o protocolo”, é alvo da reprimenda das “elites”, que tem nojinho de seus costumes autênticos e populares. Diante da investida do “establishment”, passa a ser defendido pelo “povo”, que toma para si a ofensa e defende Bolsonaro, pois, afinal, Bolsonaro é povo naquele momento. O recurso, caros leitores, foi bastante funcional quando Bolsonaro se insurgiu contra os ditames do politicamente correto em sua campanha. De fato, há sim uma elite que faz de tudo para impor, top down, seus valores para uma população que despreza. O presidente venceu todas as vezes que jogou esse jogo.
O problema, entretanto, é que o recurso foi retirado de seu contexto original. A defesa não é mais dos “valores”, do “senso comum”, das “crenças” do homem médio. É, desta vez, da estética popularesca de Jair, de seus aspectos mais externos e marketeiros, de uma linguagem eleitoreira buscando vinculação superficial a um suposto “jeito de ser” do brasileiro. O recurso vem desde os tempos da “caneta Bic”, do “pão com leite condensado” , do “relógio Casio” e das camisetas de futebol. Funcionou, no começo, pois a crítica ao presidente não estava articulada; hoje, porém, é recurso manjado e derrotado.
A crítica a Jair, durante a campanha eleitoral, foi conduzida por uma esquerda tarada por fascismos e escândalos artificiais. Inflaram Jair chamando-o de homofóbico, mas deram pouca atenção para seu estilo de vida nababesco, os gastos de gabinete homéricos e o carreirismo familiar na vida pública. O presidente passou a sofrer danos à sua imagem, apenas, quando o escândalo da rachadinha veio à tona, e parte daquilo que chamamos de direita voltou a artilharia contra ele.
As offshores milionárias, a mansão avaliada em mais de R$6 milhões de reais de Flávio Bolsonaro, o lobby asqueroso do crianção Jair Renan, os R$30 milhões do cartão corporativo, as viagens inúteis, a vida de dondoca de Michele Bolsonaro, a picanha Wagyu no planalto, a proteção aos filhos no judiciário, tudo isso, corroeu a imagem de homem impoluto e próximo do povo que Bolsonaro construiu durante a campanha. As contradições se avolumaram, ao passo que as condições materiais de vida da população deterioraram. Não haveria como dizer ao povo que comesse brioches, mas Bolsonaro esboçou dizer que o custo da gasolina não estava tão caro assim. Deu no que deu.
O recurso da farinha de mandioca na roupa, desajeitado, mostra que a outrora vitoriosa comunicação do direitista já não acerta a mão nas estratégias em redes sociais. Mais: é sinal do embolhamento do grupo presidencial, preso que está na validação perpétua de uma massa de seguidores numerosa, porém minoritária no mundo real. Em sua defesa, os defensores de tal linguagem argumentam que ela reforça o caráter popularesco do presidente, justamente no momento em que Bolsonaro investe no Auxílio Emergencial, no abatimento nas contas de luz e em gás subsidiado para as camadas mais pobres.
Com todo o respeito que os senhores do Centrão merecem, a estratégia é furada. Bolsonaro não é Lula, e o uso destes recursos — devidamente distribuídos pela base aliada do presidente — beneficia mais a eles do que a Bolsonaro. Como já alertamos, é questão de tempo para que os operadores deste grupo passem para o lado de Lula. Nenhuma transformação real na vida das pessoas irá ocorrer, e este eleitorado mais pobre, especialmente no nordeste, continuará apostando suas fichas no petista. Restará, ao fim, a solidão e a farofa. Aliás, mais solidão que farofa, caída no chão na porquice de um presidente que não sabia governar.
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