Não é simples enquadrar a ação histórica do Partido dos Trabalhadores. Fundado como uma das múltiplas legendas que surgem para levar adiante o legado socialista, já combalido desde as revelações do Relatório Kruschev em 1956, o PT surge como síntese de elementos heterogêneos. Na sua fundação, o partido congrega quadros oriundos da esquerda católica, influente na América Latina através da Teologia da Libertação e das comunidades de base, líderes do sindicalismo brasileiro e intelectuais já estabelecidos como intérpretes clássicos da realidade social brasileira.
O Partido dos Trabalhadores nasce com a envergadura de um projeto nacional. Ele guarda o horizonte ambicioso de construir um socialismo à maneira brasileira, em que se fossem respeitados os fundamentos da cultura nacional através de uma mudança profunda na estrutura política e econômica do país. Reforma agrária, luta sindical, disputa de espaços na universidade pública, criação de bancadas e capilaridade municipal - eis alguns meios de atingir esse objetivo, meios que o PT buscou multiplicar na fase que antecedeu à subida de Lula ao poder.
A ascensão de Lula ao poder foi pavimentada pela construção de dois tipos de quadros. Um deles era o quadro eletivo, isto é, o candidato que disputava a eleição com as bandeiras tradicionais do partido - e brilhava nas CPIs acusatórias e nas campanhas pela Ética dos anos 90. O outro era a militância, enraizada nos espaços de consenso da sociedade civil, notadamente nos sindicatos, nas universidades e nos movimentos sociais intimamente vinculados ao partido.
A história do lulismo, termo cunhado pelo cientista político André Singer, pode ser compreendida, a meu ver, como um deslocamento da força do segundo tipo de quadro para o primeiro. A energia dos movimentos sociais e intelectuais ligados ao partido começa, afinal, a vacilar, já a partir da guinada operada pelo marketing lulista. A Carta ao Povo Brasileiro, a formação de uma equipe econômica ortodoxa, a demissão de quadros históricos que estavam à frente dos programas sociais petistas (lembremos de Patrus Anananiasdo Fome Zero), tudo isso instalou uma espécie de mal-estar na relação entre essa base e o partido.
Todavia, o sucesso eleitoral de Lula, aliado à eficácia inegável de alguns programas de transferência de renda, fizeram com que esse mal-estar fosse recalcado nas sombras de um inconsciente incômodo. É verdade que alguns intelectuais romperam com o PT; também é verdade que uma ala do partido fundou o PSOL, em rebeldia aliás momentânea considerando os rumos gerais do partido após a coragem de sua ruptura; e, por fim, é verdade que os movimentos sociais ora ensairam alguma independência, ora ensaiaram um retorno filial a essa figura senhorial, o Lula. A Igreja Católica foi, de todas essas instituições que integraram a base original do partido, a que se afasta mais significativamente. A Igreja é uma instituição hierárquica, e sob os pontificados de João Paulo II e, especialmente, Bento XVI, houve uma intervenção desde cima, a partir do momento em que o Vaticano começou a pressionar por maior ortodoxia das vozes eclesiásticas da América Latina, processo do qual se constitui notável exemplo a exigência de um obsequioso silêncio por parte de Leonardo Boff.
Ao contrário da defecção de setores da classe média, causada pelos escândalos de corrupção do partido, o mal-estar das próprias bases da militância petista não tinha ligação necessária com a questão da corrupção. Como bases profundamente ideologizadas, para elas o ponto sensível na caminhada do PT era o reformismo. O reformismo se define, no caso específico, por alguns fatores, entres os quais: a capitulação perante o consenso econômico vigente desde o governo FHC, a aliança com a burguesia nacional, a política de conchavos com os partidos oligárquicos, as práticas de corrupção mais tradicionais da mais espúria bancada fisiológica. Sob esta ótica, o PT parecia cada vez menos à esquerda, ao mesmo tempo em que paradoxalmente, era cada vez mais acusado como um partido de esquerda pela direita nascente, bastante feroz na sua retórica anticomunista.
A despeito da insatisfação crescente das suas bases ideologizadas, quando os resultados eleitorais ainda se mostravam consistentes, isto parecia assegurar a correção da estratégia dos marqueteiros do lulismo. Estes resultados eleitorais tinham a força de enfraquecer as críticas, mas não eliminá-las completamente. Evidentemente, o partido nunca pôde silenciá-las completamente, embora a sua natureza hegemonista fizesse com que ele tentasse Assim, os críticos da esquerda observavam que boa estratégia eleitoral não é sinônimo de uma efetiva tomada do poder. Muito menos parecia exequível o objetivo inaugural da legenda, a saber, a construção de um socialismo com características brasileiras.
O impeachment de Dilma desarranjou essa relação internamente. O que parecia até então quase intocável, torna-se objeto de críticas mais duras. Se o PT foi então “golpeado”, parte da responsabilidade do golpe se devia a ele mesmo. Fora ele que resolvera optar por conciliar com a burguesia e por estabelecer relações conjunturais com a oligarquia brasileira que, uma vez chegado o seu momento de fragilidade, descartava a legenda num ataque parlamentar contra ela.
Mas o impeachment foi um presente ambíguo para essa esquerda já insatisfeita com os rumos da sua maior legenda. Ao ser obrigada a se posicionar contra a tal “ameaça fascista”, houve novamente uma composição em torno da defesa algo desesperada de Dilma, e um alento saudoso, um apelo nostálgico ao passado de Lula. A prisão de Lula reforçou o movimento messiânico e o personalismo nas suas fileiras. Tratava-se não mais de pensar numa alternativa à dominância do paradigma econômico neoliberal (bem entendido: essa é a visão da esquerda crítica ao PT. Não é a nossa). Mais distante ainda ficava a possibilidade de subverter o capitalismo e criar uma democracia igualitária em moldes brasileiros. Esses objetivos maiores eram comprimidos pela imediatez da ação prática: salvar-se do impeachment, lutar por Lula - alvos eminentemente personalistas, como se pode facilmente perceber.
É claro que o processo foi todo muito confuso. A direita nascente foi vista como um mero braço dos partidos tradicionais. Um erro, afinal. Ela também foi vista como uma perigosa ameaça fascista (o que escondeu o seu claríssimo componente liberal). Toda essa impostura classificatória apenas parece a demonização inteligente de um adversário. O problema é que quando se crê em falsidades teóricas, a teoria se vinga dos que a manipulam descaradamente.
Assim, se, por um lado, o PT é um formidável adversário, por outro lado, esse adversário está sob o fogo cruzado de suas variadas contradições. A contradição ideológica do partido, que decidimos explorar neste artigo, não é a única. Somam-se a ela a contradição estrutural de um Brasil que não consegue decolar, a contradição de um partido envelhecido, aferrado a uma burocracia estiolada; há também a contradição de ter de operar contorcionismos mirabolantes para salvaguardar a honestidade que já ninguém, nem os próprios petistas, acreditam que a sua legenda possua. E, finalmente, há a contradição de que a expressão mais poderosa da esquerda brasileira é vista, pela própria esquerda, como uma força hegemônica e quase tirânica no seu campo.
Onde está a democracia igualitária daqueles que agem como velhos suseranos? Essa é uma pergunta que, acredito, ainda assombrará o Partido dos Trabalhadores.
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