
Pipocam na internet vídeos de saques em lojas e supermercados no início da quarentena brasileira. Outros dois, também marcantes, relatam os primeiros sinais de conflito que surgem no horizonte: no primeiro, um grupo de viciados em crack ataca pessoas nas ruas do Rio de Janeiro, tal qual uma matilha; no segundo, presidiários, no interior de São Paulo, fogem do cárcere após nova política de saidinhas ser implementada — em decorrência do vírus.
Em todos os casos, o que vimos foram os primeiros sintomas sociais da pandemia do coronavírus, cujas sequelas se estenderão para muito além dos pulmões de suas vítimas.
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O Brasil é um país cujas contradições não o permitem parar de pé. Somos um amontoado, jamais construção. Doses cavalares de ideologia, sacrifício e ignorância permitiam uma relativa estabilidade, por mascararem uma estrutura política e administrativa completamente destacadas de nossa realidade.
As redes sociais vieram — 2013 veio — e a estabilidade passou. Vivemos uma guerra latente, ainda não convertida em convulsão social. Mas eis que o corona aterrissou por aqui. Instantaneamente, privilégios como o "fundão" eleitoral e os altos salários do funcionalismo foram questionados; políticos explodem nas redes sociais pedido que esses gastos sejam direcionados à saúde.
São demandas impossíveis de ser ignoradas. A classe média, eventualmente, vencerá. Mas o cadáver do estado patrimonial continuará exposto. O problema não termina aqui
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Surgem os primeiros casos de COVID-19 nas periferias. No Rio de Janeiro, o vírus já foi confirmado na explosiva Cidade de Deus. Não é preciso discorrer aqui sobre as condições sanitárias, a ausência de cômodos, a proximidade entre as residências. Tais locais são barris de pólvora, prestes a explodir. E como miséria pouca não é bobagem, não podemos esquecer: o acesso policial é restrito, dependendo do tráfico o toque de recolher e a obediência à quarentena.
Na baixada fluminense, o sistema de saúde já se encontra colapsado, mesmo antes do corona. Uma população enfurecida, sem trabalho nem renda, verá seus pais — por vezes seus filhos e irmãos — perecerem sem respiradores nem leitos em plena luz do sol. Vereadores e prefeitos, que construíram suas carreiras através do clientelismo no serviço público, não terão o que fazer. Tentarão se salvar primeiro. Não serão perdoados.
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A expectativa do ministro Mandetta é de normalizar a situação só em setembro. O pico da crise é aguardado para as próximas semanas, entre abril e maio. A quarentena será longa e extenuante. Milhões de autônomos não terão como se manter. Um dos países com a menor poupança do mundo se confrontará com a necessidade batendo à porta já nos primeiros dias.
As periferias sofrerão antes — e mais. O real nível de informalidade, impossível de ser detectado, se fará percebido pela massa de cidadãos desesperados à procura de dinheiro para comer, se medicar, sobreviver. As facções criminosas, vendo o tráfico minguar, incentivarão o roubo a lojas e residências. Em algum momento, as forças policiais — já parcialmente amotinadas em muitos estados — poderão colapsar.
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O clima entre a presidência da república e os demais entes federativos só deteriora. O presidente Bolsonaro, eternamente preso ao medo de perder o poder, insiste na infrutífera disputa com governadores. Teme — veja só! — o protagonismo de outros nomes no combate ao vírus. Foi assim com Mandetta, nomeado pelo presidente e seu amigo de longa data; é, agora, com homens que inspiram pânico em seus filhos: Wilson Witzel e João Doria.
Entre uma entrevista e outra, o presidente minimiza a crise e ataca seus adversários. Chamou João Dória de “lunático" por conta do estado avançado dos preparativos paulistas. Foi prontamente respondido. Mais: é achincalhado, diariamente, por governadores dos mais diferentes estados e posições ideológicas, inconformados com a debilidade do planalto na condução da crise.
Perdeu-se o respeito pelo presidente. Não que Jair, em algum momento, tenha se dado ao respeito. Mas já não é considerado líder ou condutor por ninguém que realmente importa. Não à toa, obriga seus ministros a tecerem loas à sua liderança nas coletivas de imprensa. Mandetta, constrangido, o chamou de “grande timoneiro”.
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Possivelmente infectado pelo vírus, o presidente teme, acima de tudo, que seu vice assuma as rédeas durante o ápice da crise. Seria terrível para Bolsonaro ver seu eleitorado mais cativo encontrar em Mourão as qualidades que faltaram em Jair.
Brigado com o congresso — alvo de uma manifestação governista que pretendia fechá-lo — Bolsonaro mandou sondar a possibilidade de um estado de sítio durante a quarentena do corona. A hipótese foi ridicularizada pelos demais poderes. Mas passa a fazer sentido diante de um quadro de anomia que pode tomar conta do país ao longo das próximas semanas. Seria a cartada perfeita para empoderar uma presidência que rapidamente se esvaziou. Mas a questão é…alguém confia?
É o famoso se ficar o bicho pega, se correr o bicho come.
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As panelas não param de cantar nas janelas da quarentena. Conforme as mortes se avolumam, a popularidade se esvai. A classe média não mais se alinha por ideologia, mas sim pela sobrevivência dos seus. Filhos de esquerda protegem pais de direita; irmãos de direita cuidam de irmãs de esquerda. Cria-se o clima para todo tipo de mudança — no sistema, nos privilégios, no âmago da própria democracia.
Pois não nos enganemos: o corona não faz distinção entre ricos e pobres. Vai levar quem puder ao longo do caminho. O Brasil que criará — que restará — ainda é incerto. Certo, apenas, é que não será o mesmo de antes. Os ingredientes aqui listados não são necessariamente bons. Mas são reais. E essa será, talvez, a primeira vez que a sociedade brasileira enfrentará, irmanada, um problema real, visceral, transformador.
Gostemos ou não — positiva ou não —, uma revolução vai surgindo no horizonte.
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