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Parabéns, presidente! Você conseguiu. Ainda que sua base rumine expectativas mágicas sobre suas capacidades, nem eles imaginavam que Bolsonaro tivesse o poder de dispor sobre a vida e a morte de tanta gente. Pois sim, se podemos responsabilizá-lo pelas mortes na pandemia, seria por demais injusto não atribuir a ele os louros de uma ressurreição. Faremos, pois, justiça ao homem. Nem só de morte ele é especialista.
Bolsonaro ressuscitou um campo político. Não é pouca coisa. Trouxe do inferno teses e figuras consideradas extintas no debate público, representantes de rancores e arcaísmos que deveriam, há muito, terem sido superados em nosso país. A lacração deixou de ser ridícula aos olhos do homem comum, pois passou, não imagine como, a encontrar semelhança num mundo real em que o presidente de fato tenta arquitetar um golpe de estado e sabotar a saúde de seus governados.
A mágica empregada por Bolsonaro deve ser estudada, pois não há registro na história recente de um ressurgimento tão rápido de um campo político que, repito, foi destroçado ao longo dos últimos anos. Dilma foi escorraçada durante as maiores manifestações que este país já viu. A esquerda foi expulsa dos grandes centros urbanos nas eleições municipais de 2016. A Lava Jato expôs as entranhas da cleptocracia reinante, e o ex-presidente Lula foi preso em apoteótico processo judicial. Derrotados nas ruas e nas teses, a esquerda estava de joelhos. E não tinha razões para se reerguer. Até Bolsonaro aparecer.
Eleito presidente em 2018, Bolsonaro não precisava de muito. Deveria construir base política, recuar no discurso golpista, afastar família e malucos e, enfim, ser presidente. As expectativas eram altas, o mercado e a população depositaram confiança. Bastava fazer o básico — continuar o governo Temer, ser vigilante com a corrupção. Era pedir muito? Fosse Bolsonaro um presidente, não. O problema, amigos, é que não elegemos um presidente, mas sim um mito. E mitos, pairando acima da história, nela produzem estranhas epopéias.
Governando como louco, Bolsonaro promoveu a destruição dos valores do campo da direita que, ainda nascente, dependia demais de suas causas e de menos de sua estrutura política. Cercou-se de dementes, mentecaptos e picaretas, produziu espetáculo na forma de golden shower e, ameaçado por uma pandemia global, viu nela oportunidade para dar um golpe de estado — e não de salvar o próprio povo.
Ao se provar — percebam este detalhe — um homem sem empatia, que faz uso da desgraça para concentrar poder, Bolsonaro terminou por validar de forma inequívoca algo maior que as teses políticas de esquerda. Validou seu sentimento, sua percepção intuitiva, seu discurso e sentimento histórico. Bolsonaro encarnou os clichês mais vagabundos de militar insensível, anti-democrático, inimigo do próprio povo e da natureza, apaixonado por poder, arrogante, grosseiro e inculto. E entregou tais qualidades de bandeja, para que todos pudessem entender.
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A direita brasileira feneceu junto ao regime anti-democrático que nos governou entre 1964 e 1985. Suas máculas históricas serviram de base para uma hegemonia cultural e política de certo tipo de esquerda que se criou e floresceu lutando pela democracia — com todas as ressalvas devidas aos projetos autoritários defendidos por este mesmo grupo. Para quem viveu nos anos 90 e começo dos anos 2000, definir-se como direita era sinônimo de autoritário, torturador e anti-democrático. O renascimento do campo, puxado pelas manifestações de 2015 e 2016, parecia ter livrado liberais e conservadores dos estigmas do período da ditadura.
Faltou, porém, combinar com os russos. Incapaz de articular uma candidatura, essa direita se viu vítima de um parasita do próprio campo, meme alçado a candidato e menino de recados de um dos artífices do conservadorismo tupiniquim. Bolsonaro, servindo Olavo, era reedição do estereótipo bizarro do milico brasileiro saudoso dos “bons tempos” do regime de 64. Facilitava seu discurso o descalabro econômico e moral dos tempos de PT, as 60 mil vítimas anuais da violência urbana e o sentimento de derrota após o vôo de galinha dos tempos de Lula. Bolsonaro apropriou-se das ruas, mesclou-se às suas causas e fez delas sua mola propulsora.
O fato de ter sido endossado por Paulo Guedes e Sérgio Moro em seu governo, no status de “superministros”, reforçou por demais sua posição de legatário e materialização da nova direita brasileira. Foi neste instante, percebam, que ela pereceu. Feito presidente, Bolsonaro desfez-se das causas. Causa única era sua permanência no poder. Inebriado pelo cargo, abriu ao mundo, sem censura, o verdadeiro Bolsonaro dos tempos de exército e baixo clero. O homem pequeno, rasteiro, raivoso e cruel que todos conhecemos. O homem que materializou os estereótipos cantados em verso e prosa pela esquerda brasileira.
O sucesso das manifestações da esquerda, no último sábado, é resultante dessa mágica. Como nos anos 90, o bloco progressista ataca fantasmas da ditadura pois estes, magicamente, voltaram a rondar o palácio do planalto. Pessoas comuns — não apenas o militante ridículo — sentem-se representadas pelos mesmos atores políticos que renegaram com toda sua força ao longo dos últimos anos. Analista algum poderia prever um fenômeno desta ordem. É feitiçaria. Truque. Coisa do outro mundo.
Chamem do que quiser a ressurreição do último sábado. É fenômeno bizarro, mas prefiro tratar como tragédia. O drama que vivemos — a provável eleição de Lula — tem as digitais de Bolsonaro, de suas meretrizes na imprensa, de sua militância imbecilizada, de seus aproveitadores no mercado financeiro. De tanto profetizar a volta do PT, estão prestes a conseguir. Parabéns, presidente! Vivas ao capitão! Essa conquista você pode comemorar junto ao rebanho.