Há certo tempo atrás, andei conversando sobre o liberalismo brasileiro nas nossas tradicionais lives no programa MBL News. O diagnóstico me parecia muito claro: alçado ao poder com um projeto político nascido de múltiplas fontes, Bolsonaro tinha patrocinado o liberalismo brasileiro sob as asas do seu superministro da economia, Paulo Guedes. Não era apenas Guedes que subia ao poder. Ele trazia toda uma turma, ligada ao Instituto Mises e ao antigo instituto liberal, e, de modo geral, àquele esforço criativo dos anos 90, que, com o combo Paulo Guedes/Bolsonaro, parecia estar dando o seu fruto político mais visível e notável.
Esse movimento encontrava em Paulo Guedes o seu herói, aquele que finalmente poderia tirar as ideias liberais do papel e colocá-las na prática. Era o teste que toda teoria almeja: ser posta em prática, realizar as suas promessas, solucionar os problemas para os quais fora criada e, com isso, ter o seu lugar assegurado na história. Lançando um olhar amplo e retrospectivo, a gente é capaz de ver alguns pontos fundamentais dessa concepção liberal, ligada a esses institutos que surgem na esteira do IL. Os pontos dessa concepção eram os seguintes: ataque ao estado patrimonialista brasileiro, reformas voltadas para retirar privilégios do funcionalismo, uma política fiscal de austeridade e a retomada de um programa de privatizações, já parcialmente realizado no governo FHC, mas muito mais agressivo e concorrencial (isto é, se evitaria a partilha de estatais por oligopólios privados). Os mais audaciosos imaginavam horizontes quase utópicos como a transformação do Brasil em uma espécie de Manchester do século XIX, onde floresceu a escola de pensamento liberal que influenciou Mises e uma geração de austríacos, os quais, por sua vez, influenciaram a nossa maneira de pensar o liberalismo.
Como todo projeto político, achava-se implícito nele um óbvio risco. Era um movimento perigoso. Se o governo fosse um sucesso econômico, com as reformas liberais anunciadas tendo sido executadas, o feito histórico para o liberalismo brasileiro seria extraordinário. Ainda mais do que no Plano Real, pensavam eles, teríamos uma equipe liberal alegadamente puro sangue. Era o liberalismo da crítica radical da intervenção estatal, das soluções fortes e agressivas, uma combinação supostamente thatcherista em pleno Brasil oligárquico. Nada mais revolucionário para nossa terra.
O plano, entretanto, logo começou a parecer um pouco menos realizável do que no esboço. As reformas exigiam uma articulação política que o presidente não tinha. Mas o superministro também não parecia ter qualquer habilidade além da do seu chefe. Frequentemente irritado com a imprensa, que lhe acossava por todos os lados, um fato presumível dado o antagonismo preexistente entre a imprensa e essa nova direita, Paulo Guedes queria emular o estilo do mito. Era a época de falar grosso. Mercosul? Cala a boca, jornalista. Sistema S? Vamos cortar 30% e, se reclamar, corto metade. Nas palestras para investidores, tudo parecia estar sendo feito.
Passado já um bom tempo, o que temos de objetivamente nesse balanço. Uma reforma, a da previdência, menos radical do que se queria, que conserva privilégios e exige uma nova reforma em poucos anos. Nenhuma reforma administrativa séria, nada de reformas tributárias, nada de revisão do pacto federativo. Programa de privatizações parado, redução da carga tributária, impensável.
Supunha-se também que a inflação, a alta do dólar e a subida dos preços era um triste legado do governo Dilma. O que vemos? Inflação, alta do dólar e subida dos preços. Todos os parâmetros do que seria uma gestão econômica ruim ou péssima estão hoje aí, escancaradamente. Qualquer observador isento, que não tenha paixões ideológicas, pode constatar. Aqui na Gazeta temos um caso sempre engraçado: escrevo meus textos e os comentários, quando provenientes de bolsonaristas irritados, é em tom de fúria. Tudo bem. Faz parte do jogo. Mas, meu caro bolsonarista que não gosta de mim, tentemos fazer uma reflexão simples.
Você, bolsonarista, você é um cidadão como eu, e mora no Brasil. Correto? Olhe os preços do mercado, olhe a alta do dólar (que impacta em tudo), a explosão do preço da gasolina, a dificuldade, cada vez mais premente, em simplesmente fechar o mês com as contas quitadas. Bom, alguém poderia dizer: são as dores de uma política austera que irá melhorar o cenário depois, no longo prazo. Poderia ser? Sim, poderia, mas não é. Vemos que não é ao pensar nos outros aspectos da questão. Vamos lá.
Além da conjuntura econômica do dia-a-dia, que está obviamente ruim, temos alguns fatores estruturais muito ruins, que têm sido mantidos sem grande alteração: 15 milhões de desempregados, dificuldade de abrir e fechar empresas, desemprego de jovens universitários formados em faculdades tradicionais, salários sem reajuste ou com reajuste abaixo do necessário. Tudo o que descrevi aqui são fatos conhecidos, experimentados e concretos. Você sabe disso. Isso não é o preço do feijão ou da gasolina; são variáveis mais estáveis. Você está vendo as coisas desse jeito também, e vendo essas variáveis dessa exata maneira (pois não é louco e, afinal, vivemos no mesmo país).
Agora, passemos a outros fatores ainda mais amplos. Vamos pegar a questão das privatizações. Quantas empresas o governo privatizou? Quanto de aporte isso trouxe para os cofres públicos? Nada. Não saem notícias sobre esse assunto, pelo simples fato de que ele não existe. Outra coisa: a competitividade do trabalho brasileiro. Ela aumentou? Estamos conseguindo competir melhor nos setores dos nossos empregos ou tudo está na mesma ou em retrocesso? Também, não. Não há tampouco outras reformas afora aquela da previdência. Nesse sentido, estamos parados, bem parados.
Alguns vão alegar que o governo nada pode fazer, pois é constantemente sabotado. É um argumento razoável. Só que há um problema: não é isso que todos os governos sempre dizem, que eles estão sendo sabotados? Vejamos na época da própria Dilma, uma presidente inegavelmente ruim. Ora, ela era bem ruim, mas também perdeu sua base de apoio político, e disso resultaram as famosas pautas-bombas e depois o impeachment. Não foi isso? Esse jogo, essa luta não é o fato normal de sempre? Além disso, não nos parece plausível que a falta absoluta de bons resultados econômicos seja apenas sabotagem. Primeiro, supondo que houvesse a mais dura sabotagem da história mundial, o presidente e o ministro da economia ainda têm um amplo espaço de poder. Eles podem expedir decretos, criar programas de incentivo econômico, cortar gastos, mudar a alocação de recursos. Eles têm ferramentas. Segundo, se a sabotagem é tal que ele nada pode fazer, faríamos uma pergunta moral: por que entrou? Bolsonaro e Guedes não sabiam que o sistema político seria assim? Alguém os enganou?
A grande verdade, meu caro bolsonarista, é que a situação da economia está muito ruim, em grande medida pela incompetência técnica de Paulo Guedes, aliada a fraqueza política de Bolsonaro. Eles presumiram que poderiam atuar com muito mais espaço e facilidade do que se revelou. Eles pensaram mal, avaliaram mal e se viram numa situação onde não conseguem resolver os problemas. Essa é a realidade. Isso aconteceu em nosso país e vai continuar até o fim do governo. Não adianta ficar enfurecido e me xingar porque, acima de tudo, eu sei que você também está vendo as mesmas coisas que todos nós estamos vendo. Admita isso enquanto é tempo, pois a honestidade intelectual é a primeira virtude de quem quer superar um erro que lhe custa, literalmente, tão caro.
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